Reencontrar a expressão de Mona Lisa – felicidade, indiferença, tanto e tão pouco ao mesmo tempo – é o desafio do cineasta irlandês Neil Jordan. O quadro de Leonardo da Vinci é ponto de partida, de inquietação, resumo e dificuldade às personagens enfeitiçadas pela expressão feminina ambígua, presas pouco a pouco à espiral de loucura.
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O rosto não se define, clama por completude, primeiro na menina muda que assiste à apresentação do saxofonista Danny (Stephen Rea) em Angel – O Anjo da Vingança, o primeiro longa-metragem de Jordan. A menina (Veronica Quilligan) está na abertura, enquanto o homem toca seu instrumento dentro do veículo da banda.
Persegue-o durante o show, aparenta algum desejo, inclusive espera por ele ao fim da apresentação; até a proximidade do dia seguinte, entre dia e noite, na “hora do lobo”, momento que surgem alguns criminosos na porta da casa de shows para executar o empresário da banda de Danny. A menina presencia o crime e é assassinada.
Menina ou mulher, não se sabe; a forma não denuncia a idade. Anjo sem voz, ela permite a entrada do horror, para dar lugar ao assassino improvável que aflora em Danny: atrás dos criminosos, logo ele tem uma arma em seu poder e passa a matar um a um dos membros da quadrilha perigosa, mesmo sem jeito ao papel do vingador.
O diretor prefere a santificação pela imagem. Sem o milagre, resolve-se pela indefinição, pelo mistério da jornada de um homem atormentado pela menina que não diz quem é. Enigma levado por Da Vinci e ao qual Jordan retorna em filmes que sinalizam o suspense policial, o perigo, a fuga. Histórias de homens desesperados, à sombra de belas mulheres com dificuldades para se comunicar.
A começar pelo título, Mona Lisa, de 1986, retorna ao famoso quadro. Começa com a música de mesmo nome, cantada aqui por Nat King Cole, em certa medida à contramão do homem em cena: muita delicadeza para o bruto atarracado, feito pelo sempre especial Bob Hoskins.
Após sete anos na cadeia, George retorna ao seu bairro e percebe uma boa quantidade de negros na vizinhança. Os tempos mudaram, os negócios do submundo também. Sua ex-mulher impede que ele veja a filha, uma adolescente. Seu único caminho é bater à porta dos chefões, de onde sai com o emprego de motorista de uma prostituta de luxo.
Ela, Simone (Cathy Tyson), tem bons modos, veste-se bem, fala o necessário, comporta-se como dama, por isso mesmo diferente de tantas mulheres que por alguns trocados se vendem nas ruas e becos londrinos. O sexo à venda e as mulheres estão por todos os lados. George assusta-se com essa facilidade, com a podridão, com todas aquelas belas meninas drogadas, sem capacidade de raciocínio, da mesma idade de sua filha.
O quadro de Da Vinci aparece rapidamente, ao fundo, como objeto perdido entre tantas folhas coladas na parede. Incorporada à cultura pop, a Gioconda ocupa o segundo plano, perdida entre recortes. Sinal dos tempos em que mulheres – imagens ou verdadeiras – são mastigadas, não valem mais nada. Mona Lisa é sobre um homem durão que aprende a amar uma dessas mulheres misteriosas, justamente Simone, prostituta negra.
Não estranha que Jordan isole a atriz de explosões dramáticas e exageros. A quentura cabe a Hoskins, em sua melhor forma. O rosto da prostituta (das prostitutas) demole antigos ideais; o homem é dobrado, muda, percebe o que os outros não percebem: encontrou a humanidade no interior de olhares e expressões, em sua Mona Lisa.
O poder da arte permite aberturas; rostos femininos insinuam nada e tudo ao mesmo tempo. Em Angel, Danny pergunta a uma amiga quem é Monica Vitti, após ver um cartaz de A Aventura, de Antonioni, colado na parede; em Mona Lisa, George assiste a Amarga Esperança, de Nicholas Ray, filme com um dos mais belos closes do cinema americano, o de Cathy O’Donnell nos instantes finais, após ver o companheiro executado.
As expressões ambíguas indicam filmes sem respostas fáceis. No caminho das personagens, a religião duela com a frieza e a degradação, tem efeito inócuo, talvez até enganador. Em Angel, as diferenças entre catolicismo e protestantismo são citadas com frequência; em momento revelador, uma mulher suicida-se após confessar ter desejado a morte do marido. Na parede, Cristo continua de olhos fixos, a persegui-la.
O ponto final da jornada do saxofonista é o ponto inicial da história, onde a menina muda foi assassinada. A casa de shows está aos pedaços, restando o esqueleto queimado. O espaço abriga agora uma caravana de milagres religiosos, a fé comercializada.
O melhor amigo de George vende imagens sacras transparentes, com luzes no interior, o que outra vez reforça a religião como produto. Mais tarde, a prostituta loura que o protagonista procura está no interior de uma igreja vazia, ou quase. Ao questionar Simone sobre a escolha do ponto de encontro pelo cafetão, ela diz que é o local para onde ninguém vai.
Em Angel e Mona Lisa, a crise de fé é compensada pelas descobertas das personagens, enquanto se deparam com equivalentes ao sorriso de Mona Lisa, à continuidade dos mistérios de Da Vinci. Ao não pedir definição exata, a imagem transforma o homem bruto que não sabe explicar seus sentimentos, nem seu desejo de matar.
(Angel, Neil Jordan, 1982)
(Idem, Neil Jordan, 1986)
Notas:
Angel – O Anjo da Vingança: ★★★★☆
Mona Lisa: ★★★★☆
Imagem do cabeçalho: Mona Lisa.
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