Tempos modernos, novos Messias

Ao rapaz com poderes especiais de Lua de Júpiter, o ambiente úmido. Ao perdido, abobalhado, de Lazzaro Felice, o seco. Dois opostos fundamentais às composições almejadas, em histórias sobre pessoas escolhidas, representações do Messias na Terra.

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A umidade do filme do húngaro Kornél Mundruczó reproduz uma Europa que definha, cuja pouca vida aperta-se em becos, salas de hospital, corredores escuros. Nada muito belo, à exceção dos voos do jovem escolhido, o Messias em questão, Aryan (Zsombor Jéger), que sobe aos céus, gira, em seus momentos de liberdade.

Sobrevive em um espaço de perseguidos, não quer ser herói, mas escapar. É um refugiado que tenta chegar à Europa, perseguido por carrascos armados. Foge o filme todo. Aos céus, alivia com velocidade oposta à dos inúmeros e famosos super-heróis do cinema americano; ao contrário, tem paciência. O ato é sua amostra de divindade.

O fantástico ganha espaço mais pelo que apresenta ao olho nu, pelo efeito primeiro, menos pelo que pode causar. O menino apenas voa, ou levita – o suficiente para ser chamado de santo, ou anjo, ou para render alguns trocados ao anti-herói que o acompanha, o médico cujo erro, no passado, custou-lhe uma vida, Gabor (Merab Ninidze).

A história pertence ao segundo. Opção acertada. Ao primeiro resta a distância do Deus feito homem, por isso mesmo alguém que não se procura compreender, ou penetrar: não terá vida, apenas uma existência de dores, prisões e voos, pelos caminhos que deixam ver o que há de pior nessa sociedade que reprime os “outros”.

Gabor conhece as pessoas, o sistema que o cerca. Homem vivido, a quem, após o erro passado do qual tenta se expurgar, restam os acampamentos de imigrantes; ao médico que não é mais digno de sua profissão – salvar vidas – ficam aqueles que talvez, ao olhar europeu, não mereçam um bom atendimento, ou condições mínimas de vida.

A personagem explica o país em questão, o continente de sonho, como a lua de um planeta distante, inatingível, chamada justamente de Europa. Não demora para que Gabor encontre Aryan, um Cristo para salvar, conferir sua redenção. Na impossibilidade de reparar seu erro passado, recorre à tradição do apóstolo, seguidor, escudo e guia pela “terra prometida”.

O filme de Mundruczó é um Blade Runner acrescido de sinais religiosos, por isso com alguma esperança. Gabor como Deckard, o cínico e experiente pelos meandros da cidade; Aryan como um andróide em busca de uma alma, personagem que ainda não conhece o terreno em que pisa e, por ser diferente, em busca de solução, de uma vida.

Ao Lazzaro de Alice Rohrwacher, interpretado por Adriano Tardiolo, a situação é mais difícil: ele vive sobre a terra seca do campo, nos anos 1990, em uma Itália ainda sob as formas do passado. Ele e outros camponeses são mantidos quase como escravos em uma fazenda que produz tabaco, à margem das leis trabalhistas.

Ao contrário do que aponta o filme de Mundruczó, o futuro está distante. Lazzaro carrega a fábula, o sonho. Sua transição – do passado para o presente, da vida para a morte, do homem para o Messias que caminha do campo para a cidade – indica o quanto o progresso custa, e que os santos talvez continuam incompreendidos.

Quem é Lazzaro? O menino puro, bondoso, serviçal sem pressa, despreparado para a vida. Ao mesmo tempo emoção pura, ao mesmo tempo fechado, de sofrimento que não se vê. Lazzaro esteve por aí, tantas vezes, em inúmeros filmes. Ao contrário de Aryan, não foge ou se locomove consciente do caminho que trilha. Lazzaro serve ao acidente, a começar por sua queda do penhasco; depois, pelo seu despertar no mundo presente.

É outra vez o estranho, agora na cidade, onde reencontra pessoas com quem viveu no passado. Ao contrário dele, essas pessoas cresceram, corromperam-se: os explorados do campo tornaram-se os marginais da cidade, vivendo em espaços ocupados, com golpes à luz do dia, entre ricos e lojas de marca. A mutação é perversa.

O tempo presente de Rohrwacher ainda não toca o futuro de Mundruczó. Falta pouco. A polícia perseguidora não será vista, nem os acampamentos de refugiados. A questão central ainda é a terra; suas pessoas foram esquecidas e empurradas à cidade na qual tudo se locomove em velocidade assustadora.

Uma mensagem dado por Gabor em Lua de Júpiter faz pensar na condição dos marginalizados de Lazzaro Felice: “As pessoas se esquecem de olhar para cima. Vivemos horizontalmente, em nossas redes”. No filme de Mundruczó, o Messias, ainda que perseguido, pode voar e é reconhecido; no de Rohrwacher, talvez por ser bom demais, quase um alienígena, é combatido, malhado pelos intolerantes.

(Jupiter holdja, Kornél Mundruczó, 2017)
(Idem, Alice Rohrwacher, 2018)

Notas:
Lua de Júpiter: ★★★☆☆
Lazzaro Felice: ★★★★☆

Imagem do cabeçalho: Lazzaro Felice
Imagem do post: Lua de Júpiter

Veja também:
A morte, ou o que resta da vida

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