Uma falsa sensação de poder domina as três personagens centrais dos três episódios de Histórias Extraordinárias, dos textos de Edgar Allan Poe. A primeira, uma condessa, crê que pode derrotar seus sentimentos; a segunda vê-se perseguida por um duplo quando tenta executar algum gesto de força; a terceira precisa de um carro para experimentar potência.
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Para cada ato uma forma diferente. Distanciam-se em quase tudo: em ritmo, em visual, em interpretações de elenco. Para Roger Vadim, autor da primeira história, vale a caricatura entre gestos reais, falsa libertinagem por castelos com gente sorridente e distante; ao autor seguinte, Louis Malle, fica o difícil exercício do mergulho interior, entre igreja e prazeres mundanos, com condução elegante, domínio narrativo.
Por fim há Federico Fellini e o pouco que retira de Poe, algo como uma fagulha: o que importa – na forma amalucada de seu astro de cinema, fantasma drogado, que sabe da morte enquanto vive e reconhece a hercúlea missão de evitá-la – é a ambientação do espectador nos labirintos típicos do diretor, prisões, delírios.
Essas personagens – da condessa Frederique de Metzengerstein (Jane Fonda) a Toby Dammit (Terence Stamp), passando por William Wilson (Alain Delon) – reconhecem suas próprias mortes. Suas histórias, em capítulos que levam seus nomes, são sobre suas derrocadas, suas perdições, sobre reinos cada vez menores e menos palpáveis.
A condessa vive para pisar nos outros. Debocha. Vida vazia de prazeres, pouco ou nada a mais. Até o dia em que se sente atraída por um rapaz de sua família, barão dono de uma propriedade vizinha (interpretado por Peter Fonda, irmão de Jane). O sentimento torna-a mais verdadeira: de súbito, deixe de ser a mulher chegada apenas à dor e ao prazer, feliz, cujos dentes saltados ajudam na forma maléfica conferida por Vadim.
Seu objeto de desejo – curiosamente seu irmão, ainda que se procure por personagens – não se curva. Morto por acaso, ou quase, retorna em um cavalo preto. Espírito, ou renascimento, no grande animal inquieto que se acalma com a aproximação da mulher. Com ele, a suposta potência engana-a: levará ao destino do barão, às chamas.
Em William Wilson há alguém orgulhoso, crente em sua própria força. Ainda criança, é impedido de exercer a crueldade, sua dominação, quando pratica torturas em outro garoto. Mais tarde, então um estudante de medicina, seus abusos a uma mulher são desmascarados. Depois, feito soldado, envolve-se em um jogo, trapaceia e de novo é revelado.
Quem o denuncia é sempre o mesmo homem, seu homônimo, sua cópia, seu duplo: o anjo perverso porque correto, sempre nos momentos-chave, a desbancá-lo. Obriga-o a se encarar, a ver seu rastro de moralidade. William Wilson, de Malle, é sobre o confronto que se nega, dois homens em um, e por isso sobre tentar fugir de si próprio.
O prazer visto na crueldade com as mulheres, por dois momentos, ajuda a entender o homem que é Wilson: a covardia que se forja na potência do chicote, na “brincadeira” na mesa de anatomia, no uso da força para impor o que não consegue ser. Resta-lhe o confessionário, falar com um Deus no qual talvez não acredite.
No Toby Dammit adoentado de Stamp está a nulidade do sucesso. Antes que chegue ao programa de televisão e ao prêmio do qual vai participar, o ator encontra o aeroporto em cores berrantes e seu multiculturalismo; as ruas, não muito diferentes, estampam figuras assustadoras, anunciação dessa Itália de horror.
A exemplo do Guido de Oito e Meio, ele será esmagado por estruturas mecânicas, câmeras, jornalistas robóticos, para se sentir peça sem jeito, ainda assim necessária. Não estranha que prefira o carro, correr com a máquina em alta velocidade, na imagem que antecipa a excitação de Alex e sua gangue, em outro conversível, em Laranja Mecânica. Morrer com toda velocidade, sentindo-se forte, cara a cara com o Diabo.
(Histoires extraordinaires, Roger Vadim, Louis Malle e Federico Fellini, 1968)
Nota: ★★★★☆
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Fellini segundo Malle