Sentir alguma repulsa da adolescência é fácil ao longo de O Som e a Fúria. Os garotos são violentos em suas pequenas motos, bandos armados, munidos de golpes e fúria apenas para rir ou levar vantagem. Um deles, o protagonista recém-chegado ao conjunto habitacional em que corre parte da história, resiste em forma inocente e infantil.
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Com sua gaiola grande e um único pássaro de estimação, vai ao encontro do moradia da mãe que nunca aparece. Sobe 15 andares do prédio, no início, ao ser avisado que o elevador está quebrado. Presencia, nesses lances acima, a briga do síndico com o pai de um dos garotos, justamente o marginal que, não modera, tornar-se-á sua companhia.
Bruno (Vincent Gasperitsch) encontra o apartamento vazio com mensagens na parede, as boas-vindas ao filho. A única companhia é seu animal, o pássaro chamado Superman. Logo, um espírito anuncia-se no local, bela mulher com roupa de época, à luz forte, depois nua para ser tocada pela criança. Com o espírito da morte vem o crescimento.
O amigo marginal, Jean-Roger (François Négret), segue o menino à escola, está em sua classe. Garoto problema, ele tem cabelos bagunçados, motocicletas furtadas, jaqueta com broches que remetem ao mundo do faroeste, o do jovem xerife que faz valer suas ações em terra sem lei. Aprendeu em casa, com o pai violento (Bruno Cremer).
O pai, por sinal, acredita na “lei da selva”, perdeu a fé na humanidade. Jean-Roger, inconsequente como é, segue-o para desembocar na mistura que o filme trata o tempo todo: de um lado um pouco de diversão, bagunça, do outro a violência que, à medida que a obra avança, parece irreversível em sua capacidade de destruir a todos em cena.
A família violenta – com espaço ao filho mais velho que não quer seguir o caminho do pai e, por isso mesmo, é o mais amado – é assistida pelo novo visitante, o menino recém-chegado. A ele, o anjo da morte ora assombra como alívio, ora como abertura às imagens do belo corpo estendido à cama, convite à vida adulta que não conhecerá.
O Som e a Fúria compõe um olhar à marginalidade, aos conjuntos habitacionais que guardam ao mesmo tempo arquitetura futurista e deteriorada, local esquecido feito de buracos e concreto, construções invadidas pelas gangues que usam belas meninas para seduzirem seus inimigos. Jean-Roger quer se integrar a uma delas, seguido por Bruno.
O olhar à marginalidade – para Jean-Roger – oferece sempre o outro lado, o bom da escola, o bom do amor (no irmão), talvez o bom da família (no pai que, ao fim, volta para salvar o rebento). O olhar ao anjo da morte – para Bruno – compõe-se pelo oposto: ao mesmo tempo um olhar ao paraíso, à forma um tanto sacra, ao mesmo tempo o fim certo.
Para Brisseau, com roteiro de sua própria autoria, nada resta aos inocentes, àqueles que talvez nem existam, condenados a seguir os outros sem nunca se misturarem por completo. Ao mesmo tempo, condenados pela arma escondida debaixo do colchão do homem doente, que se perde entre um campo aberto, após um tiroteio.
Em uma das saídas dos moleques para outro dia de vadiagem, Jean-Roger resolve prender um cão à sua moto e arrastá-lo. Bruno, em raro arroubo, volta sua moto menor contra a do outro, confronta-o pela violência sem sentido. Ao levar o anjo da morte ao mais puro dos seres em cena, Brisseau não está simplesmente evocando um fecho dramático fácil e previsível.
Mais que isso, e ao contrário, oferece um universo real, à parte dos anjos, no qual inocentes precisam ser sacrificados para que haja alguma transformação. O espectador, perante tantos confrontos, ainda assim não está preparado para a atitude de Bruno, ao pé da árvore, ao encontrar seu pássaro morto, à sombra de um enforcado.
(De bruit et de fureur, Jean-Claude Brisseau, 1988)
Nota: ★★★★☆
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