O universo de Caligari

O cenário de Caligari, frequentemente criticado por ser plano demais, apresenta contudo uma certa profundidade advinda de perspectivas propositalmente falseadas e de ruelas oblíquas que se entrecortam bruscamente, em ângulos imprevistos; às vezes também a profundidade é dada por um pano de fundo que prolonga as ruelas com linhas onduladas – plástica audaciosa, reforçada pelos cubos inclinados das casas deterioradas. Numa extensão vaga, caminhos oblíquos, curvos ou retilíneos convergem para o fundo: um muro que a silhueta do sonâmbulo César costeia, a crista fina do telhado sobre o qual se precipita carregando a presa, os atalhos abruptos que escala na fuga.

 

Mas essas curvas, essas linhas que correm em viés, trazem em si, como assinala Rudolf Kurtz, autor de Expressionismus und Film, um significado nitidamente metafísico: pois a linha oblíqua tem sobre o espectador um efeito muito diverso da linha reta, e as curvas inesperadas provocam uma reação psíquica de ordem inteiramente diversa das linhas de disposição harmoniosa. Por fim, as subidas bruscas, as ladeiras escarpadas desencadeiam no espírito reações que diferem totalmente das provocadas por uma arquitetura rica em transições.

O que importa é criar a inquietação e o terror. A diversidade dos planos torna-se, assim, secundária.

 

Em Caligari, a interpretação expressionista conseguiu, com rara felicidade, evocar a “fisionomia latente” de uma pequena aldeia medieval, com ruelas tortuosas e escuras, passagens estreitas espremidas entre casas arruinadas cujas fachadas pensas nunca deixam penetrar a luz do dia. Portas cuneiformes com sombras pesadas e janelas oblíquas de esquadrias deformadas parecem destruir as paredes. Diante da exaltação extravagante que paira sobre o cenário sintético de Caligari, lembramos uma declaração de Edschmid [Kasimir Edschmid, pseudônimo de Eduard Schmid, escritor expressionista alemão]: “o expressionismo evolui numa excitação perpétua”. As casas ou o poço apenas esboçado na esquina de uma ruela parecem de fato sacudidos por uma extraordinária vida interior. “O caráter antediluviano dos utensílios se reanima”, diz Kurtz. Ei-nos diante do patético inquietante, criado, segundo Worringer, pela animação do inorgânico.

Esta impressão não emana somente do estranho dom de animar os objetos que possuem os alemães, acostumados às lendas selvagens. Na sintaxe normal da língua alemã, os objetos têm vida ativa, completa: emprega-se, para falar deles, adjetivos e verbos que servem para os seres vivos, as mesmas qualidades lhes são emprestadas, eles agem e reagem da mesma forma. Bem antes do expressionismo, este antropomorfismo já é levado ao exagero. Em 1879 um escritor alemão, Friedrich Vischer, fala com muita seriedade, em seu romance Auch Einer, da “perfídia do objeto”, que espreita com alegria maligna nossos vãos esforços para dominá-lo. Já era sob essa luz que apareciam os objetos enfeitiçados do universo obsedado de Hoffmann. (O objeto animado sempre atormentará o narcisismo alemão.) Na fraseologia do expressionismo, a personificação do objeto se amplia: a metáfora se expande e mistura pessoas e objetos.

Lotte H. Eisner, escritora e crítica de cinema, em A Tela Demoníaca: As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo (Editora Paz e Terra; pgs. 28 e 29). Acima e abaixo, imagens de O Gabinete do Dr. Caligari.

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Veja também:
O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene

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