Possibilidades do CinemaScope e seu uso em O Príncipe Valente

Da tela quadrada à retangular, o salto foi enorme. Aos estúdios, a alteração seria uma arma frente à presença da televisão, que pouco a pouco invadia a casa das pessoas. Era início dos anos 1950. O cinema deveria ser, a partir daí, um espetáculo maior, experiência impossível de se obter em casa, dando à tela largura e cores fortes.

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O cartaz de O Príncipe Valente, em 1954, estampava o processo CinemaScope tão grande quanto o título da obra, em parte superior. Sobretudo, vendia-se a nova experiência para uma aventura não mais que passageira, ainda que com momentos belos, boa direção, elenco classe A. O cinema alterava-se em nome da bilheteria, de sua sobrevivência.

Algumas das grandes mudanças dessa arte, sabe-se, foram embaladas por questões comerciais. Para a 20th Century Fox, não seria diferente com o CinemaScope, testado antes em O Manto Sagrado, sucesso de bilheteria.

Em O Príncipe Valente, Henry Hathaway e o diretor de fotografia Lucien Ballard constróem quadros “equilibrados”, nos quais os elementos são distribuídos com certa igualdade ao longo de sua extensão. Aos diretores acostumados à tela quadrada, a um mundo mais “fechado”, instituir outra possibilidade para a mise-en-scène não seria tarefa fácil.

Lidar com o CinemaScope significava, portanto, lidar com uma composição que ao mesmo tempo poderia acrescentar, ao mesmo tempo subtrair. No primeiro caso, dispor de mais elementos, como personagens, objetos, ou simplesmente colocar no quadro um espaço antes impossível (o que, é inegável, valorizaria cenários e o luxo hollywoodiano).

No segundo caso, alguns recursos narrativos comuns à era da tela quadrada – como a alternância de planos para evidenciar personagens de um mesmo espaço, ou o uso de plano e contraplano – dariam vez à ambientação em um único plano. Aos realizadores, isso significava quebrar regras por muito tempo estipuladas.

Em entrevista a Peter Bogdanovich, Fritz Lang lembra desses desafios ao realizar O Tesouro do Barba Rubra, de 1955. “Descobri como é difícil trabalhar desse jeito. Com o formato normal, sempre ficávamos descontentes quando tínhamos de mostrar um arranha-céu ou uma árvore, qualquer coisa alta – aspirávamos por uma tela mais larga. E, de repente, alguém aparece com uma tela comprida. Mas, se pensarmos em quadros famosos, só conheço um com esse formato, que é o de A Última Ceia.”

O desafio da composição, segue Lang na mesma resposta, consistia em preencher espaços com os quais os diretores não estavam acostumados – ao mesmo tempo, lidar com o espaço que poderiam perder, por exemplo, ao “pressionar” um corpo à linha superior da tela.

O Príncipe Valente surge nos primeiros dias dessa imposição de novas composições e desafios. Em 1954, na Revista de Cinema, Cyro Siqueira escreve sobre o uso do CinemaScope na ocasião do lançamento do filme de Hathaway, com roteiro do experiente Dudley Nichols. Siqueira enumera suas conclusões; entre elas, a possível eliminação do close-up, “cujo uso no quadro já não é mais exclusivo, e, sim, apenas dominante”.

Em outro ponto, o crítico percebeu que, diferente do que se disse na estreia de O Manto Sagrado, o CinemaScope não acabaria com a montagem acelerada “como decorrência da impossibilidade de se mudar com frequência o enquadre numa composição onde o conjunto vence o detalhe”. Ao fim, Siqueira diz que o CinemaScope “evidentemente não é o futuro do cinema – mas está em seu caminho”.

Com a vitória das telas largas, seja na televisão ou no celular, a derradeira observação mostra que o crítico estava errado. Mas a tela quadrada tampouco deixou de existir. A proliferação de aspectos integra as escolhas estéticas dos cineastas – em caso extremo e até curioso, seria usada inclusive para se entender uma personagem a partir de sua alteração, do ganho do espaço, no filme Mommy, de Xavier Dolan.

Da aurora desse alargamento, O Príncipe Valente oferece belas composições e a ideia de um vasto universo de aventuras para um jovem príncipe que, valente, precisa provar ser merecedor de um lugar na mesa do rei Arthur, em Camelot, e, de quebra, unir-se à mulher que ama.

Abaixo, dois momentos em que o espaço contribui para mergulhar na narrativa visual de O Príncipe Valente.

O juramento do príncipe

No início, o príncipe é designado por seu pai, rei viking destronado, para encontrar o rei Arthur. Antes de partir, ele faz um juramento. A sequência é apresentada entre planos do rapaz ajoelhado, no centro da tela, deixando assim espaços vazios ao canto. No corte seguinte, o rei, a rainha e um amigo viking assistem ao juramento, espalhados pelo espaço. Ao centro está uma bandeira com a cruz, além da vela um pouco ao alto, o que sinaliza a aproximação dessa família – e de um líder – ao cristianismo.

Ainda depois, o garoto é visto no mesmo quadro que as outras personagens, no canto esquerdo, à medida que o rei, de costas, ocupa o centro. Tal distribuição de elementos e personagens ajuda a compreender o tamanho do local, sua profundidade, além do confronto entre a penumbra – o pai que perde o filho para uma missão difícil, o pai (e rei) que perdeu seu trono – contra as velas e a cruz religiosa – iluminação e cores fortes.

A revelação do traidor

Em um formato que possibilita a exploração da grandeza, a Távola Redonda, na qual se reúnem os cavaleiros do rei Arthur, ganha destaque. Henry Hathaway vai além dela, com destaque ao fundo e à escadaria que leva para fora. É por ali que chega, no encerramento, o protagonista. Ele dirige-se ao rei para revelar quem entre eles é o traidor.

O desenrolar da sequência é interessante: em momentos, apenas o herói é visto no interior do quadro, cujos lados são ocupados por outros cavaleiros, sentados, um pouco distantes. Essa posição de destaque ainda dá espaço à bandeira do reino, ao fundo. No contraplano, o rei e o algoz são separados por um vácuo certamente proposital, o abismo que, visualmente, começa a separar esses homens, o soberano e o traidor desmascarado.

Com o corte seguinte, a câmera abre o campo de visão. Todas as personagens importantes estão no quadro: o herói, seu parceiro, o rei e o vilão. À direita, o traidor será visualmente isolado, de novo, enquanto os outros aglomeram-se ao centro, do lado do príncipe. Como se nota, não se tratava apenas de explorar o tamanho do espaço e seu luxo. A narrativa visual, com o incremento da tela larga, também ganhava alguns aditivos.

Veja também:
O poder do plano detalhe em A Espinha do Diabo

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