Em raros momentos de calmaria, Howard Ratner quase não move os lábios enquanto fala. Abaixa a cabeça levemente, deixa vazar o som cadenciado, parece um garoto feliz perto de seu novo golpe de sorte. Prestes a convencer alguém sobre sua jogada seguinte, de que aquela é a “hora da virada”, apesar de todas indicações contrárias.
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Assistir Joias Brutas, de Josh e Benny Safdie, é conferir dias de desespero, entre erros e acertos, de uma vida que, ao que parece, nunca foi diferente desse resumo. Um filme de ação sem ação, drama que se recusa a ser, comédia pelas beiradas, evocação de trapaças sem grandes reviravoltas, pregadas ao mundo real, ordinário.
O pequeno Ratner precisa fingir. Joga com os instantes, distribui relógios falsos e segue com constância a qualquer loja disposta a penhorar um dos grandes anéis que carrega – o dele ou o de outra pessoa, como o de um famoso jogador de basquete. O fato de o item não ser seu não importa: para levantar dinheiro e apostar, entregará o que é dos outros.
Comerciante, apostador, trambiqueiro: é difícil defini-lo. Nos dias que correm, Ratner nega-se a vender uma pedra preciosa ao mesmo jogador de basquete, Kevin Garnett (o próprio), mas aceita emprestá-la. O atleta é levado ao interior da mesma, às cores que reproduz abaixo da fina camada sem valor, como se abrisse janelas para se encontrar o próprio universo, brilho que seduz homens em leilões.
O jogador, homem rico, decide ficar mais tempo com a pedra; para Ratner, é um problema, já que a mesma será encaminhada a um leilão, do qual, espera o protagonista, é possível arrancar meio milhão de dólares. A pedra dá voltas, é o MacGuffin em questão: vale tudo e não vale nada, nem mística nem tão valiosa quanto se pensa.
Pelas joias e pelas trapaças, pelas pedras e pelos anéis, é sempre com Ratner que se termina. Em suas trombadas com todos que o cobram, em suas corridas por maços de dinheiro, em sua humilhação quando diz à mãe de seus filhos que é hora de reatarem. Para depois, em questão de dias, fazer juras de amor à namorada mais jovem.
No turbilhão da vida de Ratner ainda cabem pontuações, quebras, em geral nos encontros com a família, ou na já citada evocação dos lábios próximos que tão bem define o pequeno animal ao centro da história – incapaz de enganar o espectador, mas capaz de empurrar aqueles que o cercam ao centro de uma luta que, em cena fantástica, para ficar em um exemplo, termina com seu rosto de prazer, a confissão de que está gozando.
A ex-mulher (Idina Menzel) define a personagem central: ela nunca conheceu alguém tão irritante. Em filmes recentes, dos últimos dez ou vinte anos, sem exagero, o espectador tampouco. Preso à figura desgastada, inconfiável, feita de apostas inesperadas, corridas, humor também, o público termina em uma obra-espiral, objeto raro mas sem polimento, de aspereza e desumanidade conferidas pelos irmãos diretores.
Turbilhão que condiz com a obra dos Safdie, de seres presos a dias e horas, sem domínio dos espaços, de suas novas investidas. Figuras que, mesmo mergulhadas em drogas e crimes, como em Amor, Drogas e Nova York e Bom Comportamento, ousam sonhar com a porta de saída, sem nunca adular, prometer, sem nunca romper a bolha que sequer enxergam.
Como Ratner, Adam Sandler vem dessa galeria de ratos que não se julgam elefantes, que ainda assim ousam se passar por alguém maior em dias de grande sorte, sem noção do perigo. Ou, mais certo, sem noção da realidade. Quando chora aos braços da namorada (Julia Fox), despenca alguém consciente de sua pequenez, em lapso de sinceridade, momento em que o público ainda consegue ter pena dele.
No início, o interior da joia rara leva ao interior do homem, aos seus órgãos; no fim, o oposto. Pessoas como Ratner são feitas do material da ilusão ou que conduz para tal, nem tão caro ou raro. Da matéria brilhante à carne viva, da pedra aos homens, partículas belas e feias, sem ou com vida.
(Uncut Gems, Benny Safdie, Josh Safdie, 2019)
Nota: ★★★★★
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