O inimigo não é o chinês em Indústria Americana. Os operários que perderam seus empregos após a crise de 2008 e assistiram ao fechamento da fábrica da General Motors em Dayton, Ohio, deparam-se com um sistema modificado, não necessariamente novo. Trabalham mais para ganhar menos, não conseguem formar um sindicato.
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Esses americanos são flagrados espremidos entre máquinas, entre palavrórios, ora ou outra perdidos na tradução – a observar o chinês e tentar entendê-lo, ou se virar como pode para compreender o que move aquele povo aparentemente frio. O conflito de culturas curiosamente força a entrada do humanismo, à contramão do capitalismo agressivo.
Os homens não são apenas soldados enfileirados, guerreiros prontos para produzir muito em pouco tempo, com qualidade, como querem os chefões chineses no documentário de Steven Bognar e Julia Reichert: chegam à lente, através deles, a empatia, as preocupações, o cansaço, também algum sentimento de inferioridade.
Há uma luta silenciosa, ou até algum ponto silenciosa; a perturbação de um sistema, de uma vida feliz, algo que se perdeu. Aproxima-se assim de Honeyland, outro documentário de 2019, dirigido por Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov, sobre pessoas condenadas a suportar, através das estações, dos ciclos, a espera da morte.
Em ambos, salta a acuidade dos realizadores no trato com as partículas que logo se avolumam na tela – os operários, as abelhas. Chegam ao humanismo que alguns poucos escolhidos (não poderiam ser todos, devido ao recorte) ali pulverizam, nas confissões, na abertura – às vezes total – às suas vidas privadas, aos seus dramas diários.
Nos dois, a indiferença do capitalismo e da natureza, da fábrica e da colmeia, não encobre a vida de pessoas simples, trabalhadores em movimento constante. Não são apenas veículos para a existência do vidro ou do mel, não são apenas seres fincados na rotina, sujeitos ao labor, ao efeito do tempo implacável ou da memória.
Um dos trabalhadores da fábrica chinesa recorda os bons tempos de General Motors, da vida que teve, da estabilidade agora perdida; a produtora de mel, mulher de lenço na cabeça, roupas até o pescoço, lembra do passado, dos pretendentes que surgiram para casar com ela. Sua mãe, com mais de 90 anos, diz que o falecido pai não permitia o matrimônio.
Em Honeyland, a filha fica para cuidar da mãe. Vivem em local isolado, casa de pedras em região rural da Macedônia. Com pequeno cão preto de orelhas longas, Hatidze Muratova escala montanhas para encontrar colmeias entre buracos. Leva o mel, lida com as abelhas, assiste àquele movimento incessante de pequenas operárias em seu reino.
Surgem outras pessoas por ali. Uma família vai à região passar a temporada, cuidar de gado e cultivar o mel. Pai, mãe e um punhado de filhos. Não demora para que Hatidze aproxime-se dos visitantes, desenvolva uma relação de amizade. Com uma das crianças, volta a subir a montanha, a atravessar o rio, a cruzar a paisagem árida que remete ao Irã talhado pelo tempo de Abbas Kiarostami.
Confessa que gostaria de ter um filho para ajudá-la. Confessa, sobretudo, a necessidade de ter alguém, não assistir isolada à imposição das estações – de novos invernos difíceis, sobre a neve, e novas primaveras para sair atrás de mel. Confessa, sem dizer, o desejo de viver perto dos outros, ainda que aquela seja a única vida que conheça.
As personagens de Indústria Americana e Honeyland estão condicionadas àqueles locais. Fechadas em si próprias, de olho nos possíveis forasteiros – ainda que, da “invasão”, surjam belos gestos de amizade, nos Estados Unidos ou na Macedônia.
Os documentaristas não interferem na realidade captada. Registram, observam, aproximam-se tanto que, a certa altura, parecem não estar ali. Chegam ao natural. Fazem do cotidiano de algumas pessoas a exacerbação do humanismo aparentemente recluso, sem paixão. Procuram a beleza do gesto, o instante que explica muito, ou o suficiente.
(American Factory, Steven Bognar, Julia Reichert, 2019)
(Idem, Tamara Kotevska, Ljubomir Stefanov, 2019)
Notas:
Indústria Americana: ★★★★☆
Honeyland: ★★★★☆
Foto do cabeçalho: Indústria Americana
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