À mulher Judy Garland – rosto repuxado, a ocultar com insucesso a idade que carrega – retorna a menina Judy Garland. O que ainda espera e precisa, até o fim da vida, é que a agarrem, que cantem para ela, que devolvam o que a mesma – a estrela sem uma vida normal – entregou ao público em sua existência: um pouco de arte, outro tanto de alma.
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Nesse caso, em Judy: Muito Além do Arco-Íris, de Rupert Goold, sua música: “Algum dia eu vou desejar a uma estrela/ Acordar onde as nuvens estão muito atrás de mim/ Onde problemas derretem como balas de limão”. Mas os problemas da mulher, em filme tão triste, não derretem. No ponto em que corre a história, está fraca, psicologicamente frágil.
Quando o público responde – igualmente perdoa – com o canto de “Over The Rainbow”, é conferida a ela a imortalidade. A música é de todos, está em todos, entende a artista, “para além do arco-íris”, como em sonho agora concretizado. Como se Garland pudesse morrer enquanto o som, pelo salão e para além dele, segue se propagando.
Em noites anteriores na mesma casa de shows, em Londres, o resultado foi outro: cansada, sob o efeito de bebida alcoólica e remédios, Garland não consegue parar em pé. Desde cedo moldada ao espetáculo, criança e adolescente crescida nos estúdios, a mulher não se sustenta. Não viverá sem as pílulas que aprendeu a ingerir entre uma filmagem e outra.
No papel-título, Renée Zellweger remexe todos os músculos da face e do pescoço. Inclina a cabeça ao lado ao mesmo tempo que faz biquinho. A máscara torna Garland personagem de si mesma, a ponto de não se distinguir a verdadeira mulher da atriz e cantora, parecida com um boneco de ventríloquo. Movimentos curtos e rápidos indicam perturbação.
Zellweger não exagera. Mantém-se na medida, entre a dependência de afeto e a negação da realidade, efeito que, não por acaso, remete à juventude, às memórias que irrompem e ajudam a entendê-la. Nesse sentido, ao trabalho do poderoso Louis B. Mayer (Richard Cordery) para prendê-la aos limites de sua fábrica de ilusões, da qual não escapa.
Garland não é tão velha nem tão nova. É uma mulher estranha, feliz, um corpo de vidro que parece perto de quebrar a todo instante. Alguém que fala como se vivesse sob um roteiro, texto decorado, ainda que não seja a intenção: o que reproduz é justamente o reflexo da indústria que a moldou, retirando dela a aparência de naturalidade.
Sem boas ofertas de trabalho nos Estados Unidos, sem dinheiro para pagar as diárias de um hotel, resta-lhe a Inglaterra. A viagem faz com que deixe os filhos aos cuidados do ex-marido. Antes de embarcar, passa por uma festa na qual está sua filha Liza (Gemma-Leah Devereux), e na qual conhece seu futuro marido, o jovem Mickey (Finn Wittrock).
O rapaz quer dela não mais que o mito, a imagem, e chega a sugerir que a cantora grave um disco com os Rolling Stones. Seria um choque de universos, estilos, o que soa apenas possível à imaginação da mesma cantora. A aproximação a ele é outro dos vários tíquetes de felicidade comprados a preço baixo pela personagem central, nova desilusão.
O diretor Rupert Goold mostra a fase final da vida de uma estrela que desejava, sobretudo, o comum, vida nunca desfrutada. No melhor momento do filme, por isso, Garland está no apartamento de um casal gay que acaba de conhecer, como se o conhecesse há tempos, o suficiente para tentar preparar ali um omelete e cantar uma de suas velhas canções.
(Judy, Rupert Goold, 2019)
Nota: ★★★☆☆
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