A menina doce transforma-se em figura amarga. Passa a usar roupas colantes, brilho pelo corpo. Chega ao status de pop star, alguém que lança tendências com imagens e letras repetitivas, na qual o moderno e o cafona com alguma frequência se confundem. Raffey Cassidy transforma-se em Natalie Portman. Ambas vivem a cantora Celeste.
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Por trás dessa transformação está a sociedade do espetáculo, logo a indústria do espetáculo. Celeste é um dos sobreviventes de um massacre em escola, garota com talento para cantar e cuja canção, captada pelas lentes da tevê em uma igreja, na missa em homenagem aos mortos da mesma tragédia, torna-se sucesso.
Logo, em Vox Lux: O Preço da Fama, capitalizam com a letra – ou antes com o sentimento de perda. Quem viveu o massacre é catapultado ao sucesso. Nessa sociedade, apaga-se a dor com seu oposto, o fim com a exposição máxima, e se eleva a figura desconhecida que quase sucumbiu às balas de um atirador ao centro dos holofotes. Como se merecesse.
Ironias correm solto, cortam o espaço frio do filme de Brady Corbet. Para Celeste, nos dias que antecedem e sucedem o 11 de setembro, é o momento de ficar famosa: gravar um disco, ensaiar a dança dos shows, passar de hotel em hotel, de país em país, a trombar com os exóticos da noite – toda uma fauna aqui obrigatória.
Viver o espetáculo, sobretudo: eis um filme em que o brilho é falso, em que o excesso de luz artificial recai sobre a menina doce para lhe tornar outra. O tempo corre. A nova Celeste, na pele de Portman, está explicada: é um monstro feito à imagem de seu meio, agora com maquiagem pesada sobre o corpo, figura incomum, pop star que, como mandam as regras desse jogo, não sai mais da personagem que criou.
Mais que transformação, o que Vox Lux expõe é a confusão entre espetáculo de massa e massacres ao redor do mundo, entre a ascensão da estrela e a dos terroristas, como se, não por acaso, e não mesmo, tais acontecimentos andassem de mãos dadas: a sociedade do espetáculo cria seres perversos que se apropriam da imagem dos artistas que embalam multidões, que aprenderam a criar marcas para se destacar.
O contrário também é verificado: por alguma simbiose natural, não facilmente explicada, os artistas do mundo pop igualmente se apropriam da imagem do medo, em suposto figurino radical. E não se trata de um discurso conservador.
O filme revela a união de lados que não deveriam se conciliar. Tudo – do show da música ao “show” da morte – serve à audiência. Tudo para se ver e ser visto. “Tenho certeza de que, todo ano, meus vídeos só pioram, mas eles estão se saindo cada vez melhor”, diz a cantora. “Não importa mais se você é Michelangelo ou se você é o Mickey e o Angelo de New Brighton. Tudo o que importa é que você seja original.”
O jovem assassino que atira contra inocentes no início do filme, de passagem, carrega maquiagem sobre os olhos e, ao tirá-la, é como se tirasse a própria máscara. O preto colado às pálpebras, somado ao cabelo curto, faz pensar justamente no visual futuro da cantora.
Raffey Cassidy interpreta Celeste em versão jovem e depois sua própria filha. O diretor, a partir de roteiro de sua autoria, revela o espelho distorcido, a negação que coloca a menina à contramão da progenitora defeituosa, enquanto a segunda esforça-se para se aproximar da primeira, a sacar algum tempo para almoçar com a filha.
A parte final reproduz o total espaço de falsidade, o palco em que a estrela satisfaz os fãs como o objeto de desejo em cores e letras fáceis. Aos terroristas, trata-se da imagem da “corrupção ocidental”, carimbo frequentemente usado para se praticar atos horrendos, como se o mundo pop – fruto de algo maior, de certa ocidentalização – fosse o culpado.
(Vox Lux, Brady Corbet, 2018)
Nota: ★★★☆☆
Veja também:
Mal do Século, de Todd Haynes