1917, de Sam Mendes

A experiência palpável prometida pela ausência do corte nem sempre se materializa. A empreitada pela eliminação dos chamados “tempos mortos” (resolvida, em outros filmes, com a elipse) impõe a necessidade de que algo aconteça a todo momento. Se não uma ação ou algo perigoso, ou uma catarse pela despedida ou sofrimento de outrem, em 1917 é justamente a imposição de certa beleza o recurso a captar a atenção.

O palpável – nessa necessidade de peças encaixadas, desse cinema com o qual nunca se perde tempo – dá lugar justamente ao devaneio que carrega tanto a beleza proporcionada pela fotografia de Roger Deakins quanto a miséria que se retira da experiência de guerra proporcionada pela direção de Sam Mendes. Soa delirante, não raro irreal.

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Para se distanciar do “tempo morto”, o roteiro impõe situações variadas, com explosões ou detalhes, bombas ou ratos. O filme alude ao túnel, como se dele o público não escapasse. É menos labiríntico que Birdman, também feito “sem cortes”, mas igualmente virtuoso na maneira de colher a atenção, prender os olhos.

A câmera persegue, rodeia, traz o distante para perto das personagens, ultrapassa terrenos distintos para mostrar mais que uma guerra em um único conflito. É para sentir o tempo, para dele não se separar, ainda que haja um corte central, momento em que o protagonista é atingido à bala e desmaia. Fim do primeiro ato, descanso após tanta correria.

A ideia é colocar o público dentro da guerra, recusar o recurso de “falsidade” ao qual o olho tanto se acostumou em décadas de sétima arte: o corte. Nem por isso, pelo instante, será minimalista. E aí reside um dos problemas do filme de Mendes: a guerra continua grandiosa como nos clássicos hollywoodianos e, nela, o homem diminui. Luta-se para sobreviver à presença do conflito: quedas de avião, bombas, ataques em massa.

O filme soa épico apesar de resistir, em momentos, à abertura do campo. Vai às botas sobre a lama ou aos corpos de homens, cavalos e cães aos cantos. Qualquer pilar, parede ou escuridão é a deixa para esconder o corte. 1917 é uma bela experiência de falsidade que vende a experiência do toque, da dor, do mundo fétido das trincheiras.

Aos soldados Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay) é dada a missão de atravessar a terra de ninguém, a trincheira alemã e, em uma cidade francesa mais próxima do que parece, encontrar outro destacamento aliado e avisar sobre um plano alemão. Dois homens para uma guerra inteira, ou para algumas milhares de vidas.

Deles, nessa estrutura dramática batida, vem pura bondade. Matam porque precisam, assustam-se porque continuam jovens, fogem porque, mais que humanos, estão ali para oferecer a velocidade que o filme precisa encontrar. Mais que drama, Mendes faz ação. Sua experiência do tempo é, ironicamente, a experiência do sonho.

Para ajudar na injeção de emoção, o filme ainda conta com a trilha sonora de Thomas Newman. Acompanha os raros instantes de nada, como no momento em que os soldados param e conversam, ou silenciam. Para um cinema aborrecido em que peças precisam se encaixar a todo custo, em que o espectador precisa ser comunicado segundo a segundo sobre o espaço em que põe os pés, a música dá o recado: esse é um estado de risco.

Não estranha que o filme tenha ganhado diversos prêmios nos Estados Unidos ou fora. É o espetáculo a todo esforço, feito para tal. Seu maior revés não está na estrutura “sem cortes”, mas na desconfiança de que o público não pode deixar de ser chacoalhado, lançado ao silêncio e à aparência de que nada acontece, de que uma peça insiste em não encaixar.

(Idem, Sam Mendes, 2019)

Nota: ★★★☆☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Dois Papas, de Fernando Meirelles

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