O excesso de perfeição é o primeiro sinal de desconforto em Mal do Século, de Todd Haynes. Sua protagonista vive em redoma de limpeza e simetria, em uma grande casa com vida de luxo, a desempenhar papel algum. Aos poucos, torna-se mais fria e distante, talvez doente, põe a obra em estado de terror e sufocamento.
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A dona de casa Carol White (Julianne Moore) não entende o motivo de suas crises. O sexo com o marido, na abertura, não tem prazer. Virão outros sinais da vida mecanizada: a conversa com mulheres ricas em ambientes coloridos, a ida ao salão de cabeleireiro, a relação com a empregada mexicana, a aula de ginástica.
Logo, tomada por mal-estar, Carol não consegue viver entre seus pares, em seu meio: qualquer sinal de fumaça e alimentação imprópria causa-lhe temor. O mundo todo, com todos os seus espaços, é apavorante, ameaçador. O filme de Haynes é sobre uma sociedade em busca de cura para tudo, alguns anos depois do surgimento da aids, nos últimos dias da Guerra Fria, encapsulada em shopping centers e sedenta por beleza.
A sequência em que Carol está no trânsito, sufocada pelo caminhão, expõe o desequilíbrio: a fumaça do veículo é a própria representação do mundo contra ela. O efeito é apenas visual. Não há nada de suficientemente letal nesse universo “perfeito”. Ao que parece, a mulher busca em si a imperfeição, presa ao vazio e à rotina.
Não demora e a vida torna-se asséptica. Carol, após crises inexplicáveis ao olhar médico, isola-se – com outras pessoas – em um retiro feito especialmente a quem vive com medo, aos paranoicos. Haynes escancara uma sociedade doente.
A situação da mulher é cada vez pior: não demora a ser hospitalizada, a arrastar um cilindro de oxigênio, a se prender em uma espécie de iglu criado para combater doenças externas – enquanto, tão perto dela, é possível ver um coiote, o animal livre. Ao tentar combater o mal, a sociedade em questão cria sua própria doença. É mais fácil culpar o que não pode ser visto, como bactérias e substâncias químicas.
Primeiro sentimos pena da protagonista. Conforme a obra avança, é difícil saber o que esperar dessa mulher além de gradual deterioração. Moore conjuga o melhor e o pior das pessoas, o instinto de sobrevivência elevado ao grau de loucura, à ideia de que apenas o refúgio à natureza, ao local com aparência de seita, pode nos salvar.
O filme revela um círculo de pavor, o que justifica o encerramento angustiante: isolada em sua cápsula, sob a benção de amigos aparentemente felizes, Carol tem apenas ela mesma, seu amor próprio, o amor como mero reflexo da autopreservação.
Há uma diferença entre se esconder e sobreviver, entre estar em um mundo consumido pela radiação e em outro no qual ainda se pode circular ao ar livre. Carol não enxerga mais o segundo. Além da imagem do coiote, o filme reserva outra igualmente emblemática: o homem coberto por uma roupa protetora, alienígena a vagar em sua bolha, nessa ideia de sobrevivência a todo custo.
O terror esconde-se na aparência comum, na limpeza, na casa de belos móveis, na suposta civilidade das dondocas, no excesso de nada. Com personagens que não se percebem deslocadas, Mal do Século obriga o espectador a procurar o problema e, sobretudo, a perceber que o mesmo está em todos os lugares.
(Safe, Todd Haynes, 1995)
Nota: ★★★★☆
Veja também:
Boy Erased: Uma Verdade Anulada, de Joel Edgerton
Muito obrigado por comentar sobre esse filme. Não o conhecia e fiquei curioso para vê-lo e aos demais dirigidos por Todd Haynes.
Fico feliz em saber. Abraços!