A Missão, de Roland Joffé

As crianças agigantam-se, dão esperança: perto do término de A Missão, uma delas observa a igreja após o incêndio. O espaço da fé, de refúgio, de transformação para o índio convertido ao cristianismo, é agora um esqueleto, morto-vivo. A criança, ao abrir a porta, é grande, ocupa quase todo o quadro – sobrevive a um massacre.

O tom vai por aí, em um clima natural, longe de caricaturas às quais os índios já foram, tantas e tantas vezes, levados. O índio fala sua língua, é ele mesmo o fruto de seu espaço. Pela fotografia de Chris Menges, com direção de Roland Joffé, imperam a beleza, a natureza que nunca se deixa ver totalmente pelo prisma da selvageria.

Quando é para ser selvagem de verdade, ou se deixa o homem morrer pela força da correnteza das águas e, depois, da cachoeira – pela natureza irracional – ou pela presença dos jesuítas que, lado a lado com os índios, serão soldados contra colonialistas portugueses armados até o dentes, roupas brancas, canhões pela mata verde.

Ainda as crianças: apontam à importância de lutar. Ainda a fotografia: na sequência em que o garoto entrega a espada à personagem de Robert De Niro (como se dissesse “salve-me”), o homem será visto no canto esquerdo do quadro, um pouco à sombra, enquanto o garoto põe-se ao pé da cama, à direita, rumo à luz que vem do lado de fora.

Não tem jeito, os jesuítas aderem à luta. A violência é mais forte, é, àquela altura, a única maneira de responder ao homem branco que vem pela água e pela terra para retirar dos nativos a “missão”, ou seja, o espaço que construíram. E à “missão” fica o duplo sentido, ou algo mais amplo: o espaço que implica a missão de descobrir Deus e se colocar em contato com Ele, ou a missão de sobreviver aos agentes externos.

Ao homem de De Niro, caçador de índios, mercenário convertido em jesuíta, a missão será outra, uma terceira ligação com o título: lutar com a própria consciência, com quem foi e com quem é, e com quem poderá voltar a ser. Muitos homens em um só, como o silencioso e até mesmo o bárbaro, portadores de peso humano.

Rodrigo Mendoza serve bem aos dois – ou mais – papéis: matou o irmão quando este lhe impôs um duelo bobo (morte que talvez não esteja ligada ao amor por outra mulher). Ao procurar o irmão, então na companhia da bela, precisava apenas ver, encontrar o que a mente negava: a união em carne das duas pessoas que mais amava.

A negação desse amor, como uma criança traída pelas imagens de pureza e beleza, de bondade e atração sexual, leva-o ao martírio, à prisão do corpo. Do jesuíta interpretado por Jeremy Irons, aceita um desafio, tenta pagar seus pecados, sai em missão para carregar seu próprio peso, os metais que remetem ao passado carniceiro.

Pois é a esse passado que o pequeno índio recorre quando precisa convidá-lo ao conflito físico, a defendê-lo dos brancos que invariavelmente aportarão ali: vai ao fundo do rio, sob as águas fortes da cachoeira, para reviver os itens do soldado, do mercenário, do homem bruto: a espada que reaparece, como em épico místico de descobertas e mágica.

Vêm os brancos, vem a guerra. Mendoza tem outra provação: o que pode fazer pelos que protege dependerá agora da violência, não mais da oração ou do silêncio, da Bíblia. O espaço do paraíso, da missão, move-se à revolta física, ao conflito desajeitado e não menos brutal, de gestos estúpidos que incluem incêndio e tiros contra a multidão.

O filme toma partido dos jesuítas, da fé, não necessariamente da Igreja Católica. Os índios foram abusados pela fé, como que colocada goela abaixo, por homens que escalam pedras e lançam mão da música para atrair a atenção do outro. A presença da igreja, nesses homens, é, ainda que aqui não pareça, um ato tosco de dominação.

Da igreja, por meio da personagem enviada pelo papa (Ray McAnally), vê-se, como esperado, o conluio com os poderosos. O mesmo representante, ainda que com arrependimento, senta à mesa com assassinos e ignorantes bem vestidos, homens que, com ou sem a companhia dos religiosos, invadem a selva para matar nativos.

(The Mission, Roland Joffé, 1986)

Nota: ★★★☆☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Dois Papas, de Fernando Meirelles

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