A bela violinista percebe algo diferente no recluso Stéphane (Daniel Auteuil). A maneira como ele lida com o violino – o dela, o de qualquer pessoa – carrega rara delicadeza, apresenta alguém ligado a detalhes, o que nem todos os olhos são capazes de captar. O amor da bela pelo homem estranho nasce desses pequenos atos.
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O olhar dela, portanto, é igualmente raro em Um Coração no Inverno: ao contrário do amigo dele, Maxime (André Dussollier), com quem justamente ela namora, Stéphane importa-se com outras questões, ou apenas vive para si próprio, em mundo à parte, como se todo o resto – até ela, inegavelmente deslumbrante – não merecesse destaque.
Eis um belo filme sobre um homem ao mesmo tempo transparente e enigmático. O diretor Claude Sautet não faz julgamentos, não penetra o homem com afinco, não o faz preso à câmera o suficiente para parecer definível. Auteuil, a escolha certa para a personagem central, fica livre para se esconder, para agir com naturalidade.
Em depoimento a Laurent Tirard em Grandes Diretores do Cinema, Sautet fala de um “retrato em movimento”, o que define como “uma espécie de instantâneo que, pela força das coisas, ficará para sempre incompleto ou inacabado”. E afirma ainda que nunca parte de uma história, mas de “algo mais abstrato que se poderia chamar de clima”.
Atingido o clima, parece afirmar, o filme avança sozinho. O que não falta a Um Coração no Inverno: o clima que move todo um universo, que faz as pessoas – nessa estranha história de amor – encontrarem energia sem que precisem agradar ou emocionar, sem que precisem reivindicar alma a todo custo. Esta, pelo chamado “clima”, está dada.
Eis o que torna o filme simples e grandioso: é sobre uma bela e talentosa violinista apaixonada pelo último homem que deveria chamar sua atenção. Pois é justamente ele – pelo toque ao violino que ela talvez compreenda, ou no qual vê mais que toque – o escolhido para lhe roubar a atenção nos mais diferentes encontros.
Camille (Emmanuelle Béart) deixa ver o amor verdadeiro pouco a pouco, a certa altura até enlouquecido, ou impossível de abafar – ainda que procure mostrar que tudo pode estar bem, como se vê naquela reveladora expressão final, antes de o carro partir. Difícil, de temperamento forte, ela vê-se dobrada, sente-se boba.
A bela também mostra algum idealismo em relação à arte – a arte da música ou qualquer outra que passe pelo filme. Quando um homem à mesa, em roda de amigos, levanta uma discussão sobre o suposto problema do consumo da arte erudita pela grande massa, Camille sai em defesa desse acesso, para ela necessário.
Na mesma mesa, Stéphane parece pensar como o outro homem, ao lado da elite intelectual que essas pessoas representam – em algum lugar possível mas distante em que alguns ainda discutem assuntos como esse. Sautet capta gestos naturais, conversas que ganham outro relevo, enquanto o protagonista faz com que sua couraça pareça maleável.
Sobre o silêncio dele, na mesma mesa, ela tem uma posição esclarecedora: “(…) se alguém fala, pode dizer besteiras. Se se cala, não há risco, e pode parecer inteligente”. É contra a zona de conforto do homem que ela ama que dirige tal crítica. Ele entende, desconversa, e segue no que, mais tarde, revela ser um jogo. Nunca a amou.
Camille quer entendê-lo. O espectador também. A ausência de respostas dá ao protagonista mais que o benefício da dúvida: não há como culpá-lo no estranho ponto que decidiu ocupar. Seu espaço íntimo está além da compreensão. “Sempre é tarde demais, desde muito tempo”, afirma, em indicação da maneira de pensar e viver.
(Un coeur en hiver, Claude Sautet, 1992)
Nota: ★★★★☆
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Como Fera Encurralada, de Claude Sautet