A presença dos filhos ajuda a humanizar o protagonista, bandido interpretado por Lino Ventura, Abel Davos. Em vão, ele tenta ocultar das crianças o universo do crime projetado ao redor, do qual faz parte. A certa altura, justamente ao lado dos filhos, assiste ao fuzilamento da própria companheira, em fuga, após descer de um barco na Itália.
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O filme de Claude Sautet tem o tom realista das fitas policiais da época. Evita sombras pesadas, também a certeza dos homens maus que, distantes da luz, selam o destino dos outros. Ao procurar pelo humano nos criminosos, sobretudo em Abel, o diretor expõe suas intenções: não se trata de fuga, mas de desespero, incerteza, da vida como ela é.
Com algumas exceções, o problema de Abel está em todos, em qualquer um, no mundo externo do qual, agora um fugitivo, vê-se privado. A cidade é fria, reino de pedras, de oportunidades a ladrões que esperam para atacar.
Abel não é o grande criminoso que tudo sabe. A partir da obra de José Giovanni, com ele dá-se o oposto: quanto mais o tempo corre, menos sabe, mais desanimado fica, a ponto de o mundo lá fora ser, em algum sentido, indiferente à sua figura encerrada. Poderia ser a história de um perdedor, e o encerramento talvez parecesse fácil.
O narrador, no início, aponta justamente ao fim, faz com que as pontas toquem-se: “Para eles, a cidade não era nem agradável nem desagradável. Eles não a notavam. E as pessoas não eram mais reais”. No fim, ao Abel condenado restam a cidade, o espaço lá fora, o grupo, as pessoas que não conhece – sua natural condenação.
Para alguém como ele, a promessa do último crime – um clichê dos filmes policiais encabeçados por criminosos – nunca chega. Sempre há mais a fazer. Os velhos tempos de camaradagem entre bandidos – neste caso, os velhos que enriqueceram e saíram de circulação – passaram. Poderá contar apenas com os mais novos.
Para sair da Itália e viajar à França, Abel conta com a ajuda do motorista Eric Stark (Jean-Paul Belmondo), boxeador, a postos para ajudar damas em perigo. Para fazer o resgate, viaja em velha ambulância enquanto o protagonista finge ser o doente. Pela estrada, deparam-se com a bela Liliane (Sandra Milo), momento em que é agredida pelo companheiro. Eric não tem dúvidas: desce, esmurra o homem e dá carona à bela.
A conexão rápida entre Abel e o mais jovem é compreensível: apesar da idade, o novo rosto entre bandidos é alguém à moda antiga, disposto a honrar os velhos códigos. Por sinal, a personagem de Ventura parece ser a última de sua espécie, derradeira entre os dispostos a ir para a rua viver situações de risco, suor, violência.
Entre a nouvelle vague e o cinema de gênero, Como Fera Encurralada não é uma coisa ou outra. Ao que parece, Sautet faz um filme moderno para se despedir dos tempos de uma falsa – porém excitante – vilania. Do bandido em fuga, retira qualquer sinal de que é possível ser grande e morrer honrado. Abel, por isso, não morre; ao contrário, é integrado ao espaço da indiferença: a multidão. É como qualquer outro, um homem comum.
(Classe tous risques, Claude Sautet, 1960)
Nota: ★★★★☆
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