Sobre o primeiro dos papas fala-se pouco. “Nazista”, resumem dois homens, dois desconhecidos, ao longo da história. Ratzinger é o papa conservador para um tempo aberto a novos ares. O papa errado que, ao que tudo indica, reconhece o próprio anacronismo: aproxima-se das ideias e é seduzido pela simplicidade de Jorge Bergoglio.
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Ambos se encontram antes de travarem alguns longos diálogos sobre os quais repousa Dois Papas, de Fernando Meirelles. Na votação que fez de Ratzinger Bento 16, Bergoglio surpreendeu com alguns votos. Ao contrário do outro, não queria ser papa. Do lado de fora do Vaticano, a fumaça branca sucede a escura. Ratzinger leva o trono.
O encontro dos líderes religiosos deve-se às suas crises no interior da Igreja: Bergoglio quer se aposentar e não tem problema em assumir isso; o alemão precisa sair de cena e demora para justificar a despedida, o que, para um papa, em vida não é comum. As intenções de renúncia levam ambos ao diálogo, às brigas com a consciência e com o passado.
Nesse sentido, Ratzinger sempre parece mais forte: fala menos de si, deixa um rastro de incerteza. Ainda consegue sorrir, renega os improvisos e delícias do cotidiano do latino, preferindo jantar sozinho, pouco afeito ao tango ou ao futebol. Um papa triste mas sábio, inegavelmente culpado, a carregar os crimes que a igreja escondeu.
Bergoglio é gente comum. Preferiu o som das ruas, nas periferias argentinas, ao mármore do templo. É o que Meirelles expõe, do texto de Anthony McCarten: para um futuro líder que não combina com o trono nada melhor que imagens realistas, trêmulas em diversos momentos, até mesmo sob o efeito desagradável da aproximação do zoom.
À forma que mais parece desleixo está o homem cansado cuja crise de fé – não totalmente assumida – é verbalizada no desejo de se aposentar. Renúncia, ainda que tarde, da batina preta, dos trajes que o marcam entre a multidão que cruza vielas das comunidades pobres, entre muros pichados, coloridos, entre adolescentes às pressas.
A carta de um é lançada antes da chamada do outro. Caminho aberto ao diálogo. Nesse encontro, duas igrejas ainda se entendem, de diferenças que não impedem a convivência sob o teto de pinturas clássicas, pelo chão cristalino, pelas paredes brancas contra as quais, o tempo todo, duela a batina do argentino.
Sem esconder seus podres, McCarten apresenta a igreja como força ainda indestrutível, capaz de convencer o líder liberal a não se despregar do rebanho – ou, ainda mais, a aceitar a missão de ser o novo papa. Por curioso que pareça, cabe ao “nazista” fazer essa conclusão, antecipar sua passagem pelo papado, pagar com a própria aposentadoria a não aposentadoria do outro, o homem certo para a Igreja Católica do século 21.
O texto também edifica esses seres ao propor ao Ratzinger de Anthony Hopkins a necessidade de aproximação aventada, o tempo inteiro, no Bergoglio de Jonathan Pryce: é com pizza e refrigerante que celebram um entre outros momentos a dois, logo após o papa se confessar ao cardeal. O que sai da confissão é possível intuir, nunca ter certeza.
Passada a refeição, Ratzinger escolhe estar entre fiéis que visitam o Vaticano. Surpreende a todos. O rei desce do pedestal para tirar fotos com desconhecidos, deixa ser tietado, diverte-se. Bergoglio observa o momento com felicidade, como se representasse seu próprio reflexo, seu próprio futuro, na forma daquele homem distante.
(The Two Popes, Fernando Meirelles, 2019)
Nota: ★★★☆☆
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Fernando Meirelles fez um trabalho esplêndido. Consegue contar uma história emocionante com pitadas de bom humor. Não tem como não se emocionar. Às imagens trêmulas unem-se as reproduções de “selfies” desfocadas do Papa com as pessoas na Capela Sistina como a dizer que Ratzinger se reconcilia com o seu povo. Meirelles fez um trabalho belíssimo. Emocionante!
Sim, entendo que a intenção era trazer realismo. Abraços e obrigado pelo comentário.