Os campos dourados oferecem a Vincent van Gogh uma das bases de sua pintura: a luz do sol. A natureza está ali para ser agarrada, empurra o homem a lugar algum mesmo quando não está pintando, a escalar rochedos, a olhar ao nada no crepúsculo, como se o milagre fosse dado.
Curta nossa página no Facebook e siga nosso canal no YouTube
Para seu van Gogh, Julian Schnabel concede a natureza bela e palpável, nada distante, nada impossível. Natureza que granula, não escorre, não se furta da feiura. E à feiura o mesmo pintor, interpretado por Willem Dafoe, responde com a arte.
Sequência singular, nesse sentido, é aquela em que a pequena cidade afastada ainda insiste no aspecto escuro. O pintor foi embora de Paris justamente por não aguentar a neblina. Vai ao sul, como recomenda o colega Paul Gauguin (Oscar Isaac). Refugiado em seu próprio país, como ele diz se sentir, resta apenas escapar ao quadro.
Pinta seus sapatos velhos na ausência das cores externas. Sua fuga, no pequeno objeto, contra a escuridão que o persegue, conta muito sobre ele, sobre o homem que calçou tal item. E não estranha que Schnabel, em No Portal da Eternidade, mais uma vez volte a câmera aos pés da personagem central, em suas andanças à cata das cores.
Entre esses pés, entre aqueles sapatos surrados, as cores dão as caras: verde vivo e amarelo. Logo, a paisagem, motivo para se crer na natureza como fruto do divino – pela intromissão do olhar, é claro. Em sua loucura, o van Gogh apoia-se na crença, na religiosidade que carrega, e se inclina à pintura, ao que parece, para encontrá-la.
Sem a arte resta apenas o físico e, por isso, a impossibilidade de encarar Deus e sua própria obra. “Ao se deparar com uma imagem plana, eu só vejo a eternidade”, afirma o pintor, enquanto a tela está escura, à medida que olha àquilo que o público não vê, mas imagina o que seja: a natureza e suas várias paisagens, o deleite da visão.
Pela lente de Schnabel, van Gogh causa incômodo: o artista, tantas vezes levado ao cinema, de Minnelli a Pialat, parece agora a criança em busca de afago. Abraça o irmão, à cama, quando é internado no hospital; corre para fora da igreja – e se vê banhado ao azul profundo de uma terra fria – no momento em que Gauguin anuncia a partida.
Dafoe, ator completo, sabe como captar essa transpiração seca, ponto de inflexão em que o menos é mais, ou em que o louco insinua-se pela retração. A orelha dada à prostituta, arrancada de si próprio, era para Gauguin, explica o protagonista ao médico, que lhe recomenda um tempo em um hospício no qual poderá continuar pintando.
Em No Portal da Eternidade, Schnabel mostra que o que há de mais real também pode passar à esfera do sonho, do delírio – a exemplo do que fez em O Escafandro e a Borboleta. A imagem trepidante, com câmera subjetiva, migra rapidamente à contemplação dos espaços amplos. Olhar estreito necessita da vastidão do quadro, por isso da eternidade.
O artista louco, diz o diretor, com roteiro co-escrito por Jean-Claude Carrière e Louise Kugelberg, sofre por viver nesse estado de passagem, entre si mesmo e sua arte, ou seja, frente ao quadro branco. Dá-se ali a transferência, a dificuldade das primeiras pinceladas, o encontro inevitável com o divino (interno). Dessa vontade nascem quadros vibrantes, cuja tinta, observa Gauguin, tem relevo semelhante ao de uma estátua.
(At Eternity’s Gate, Julian Schnabel, 2018)
Nota: ★★★☆☆
Veja também:
Van Gogh – Vida e Obra de um Gênio, de Robert Altman