O terreno é neutro, explica o protagonista. Uma cidade fria em que correm a espionagem, a política consumida às sombras, em que o possível herói, um certo Bruno Forestier (Michel Subor), tenta escapar às definições fáceis. Nessa cidade não há dono. A disputa quase não dá as caras. A realidade das ruas é tomada por Jean-Luc Godard.
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Em certo sentido, Bruno é uma figura destituída da política em um mundo que a respira a ponto de não deixá-lo passar sem ser julgado. Tentarão levá-lo para um lado ou outro, apontá-lo como membro da direita francesa, ou agente duplo que igualmente presta serviços a espiões argelinos que percorrem a mesma cidade.
Não é possível saber quem é Bruno ao longo de O Pequeno Soldado. É o que aqui há de melhor: a anti-política da personagem dá lugar justamente ao filme político, cético sem excluir momentos de paixão e entrega. Seu protagonista filia-se à arte, à verdade da fotografia e à do cinema (em 24 quadros por segundo), aos vãos de inegável escape.
Godard, em seu segundo filme, clama pelo tempo da palavra, à contramão da ação. O do pensamento, do pequeno gesto, dos rostos jovens assustados ou em pura diversão, dos supostos espiões como homens adultos, logo passados para trás. Um cinema de figuras inconsequentes que não se esforçam para agradar.
É como se Godard tomasse como base os filmes de bandidos e espionagem de Samuel Fuller, Anjo do Mal à frente, e os testasse à luz de uma poética triste e do real, no meio em que o aparente nada dá vazão às palavras do pequeno herói que passou do tempo da ação ao da palavra, como o próprio confessa na abertura.
Cinema moderno em que a mesma impressão de nada – mais que no filme anterior do mestre, o marco Acossado – revela-se sua subsistência. Para entender a grandeza de tal obra é preciso perceber o que falta em Bruno, ou seu desespero para se agarrar a alguma coisa, seu fracasso por ser “menor”, ou por estar distante do anti-herói esperado.
Flui para um cinema sério, despido das alegrias constantes das personagens de outros filmes de Godard dessa mesma época. Lança-nos ao pior da política: o campo da incerteza, da paranoia, da desconfiança, sem dúvida o da cegueira. A tortura ao rapaz indefinido é o retrato desse período, durante a colonização francesa na Argélia.
A sequência de tortura é famosa, foi responsável pela censura do filme à época (de 1960, só foi lançado em 1963). Para tanto, Godard apresenta o gesto real, cru, o sacudir dos corpos e a aparente banalidade da violência. Para quem dizia ter se livrado do “tempo da ação”, Bruno será levado ao mesmo como que amarrado.
Seu ponto de fuga é a bela Veronica Dreyer, interpretada por Anna Karina em sua primeira parceria com Godard. Em um universo em que todos carregam filiação política e manias de perseguição, ela não escapará ao papel esperado. Antes, quando Bruno surge com sua câmera, apaixonado, a jovem posa para ele, ou para Godard.
Para o crítico de cinema Tiago Mata Machado, só ela é capaz de salvar Bruno do “pesadelo histórico em que se meteu e retirá-lo do tempo reto e irreversível dos homens (a revolução, a guerra), para instaurá-lo em um novo ciclo”. Mais ainda, só mesmo ela para nos fazer ver o material do qual esse rapaz aparentemente perdido é formado.
(Le petit soldat, Jean-Luc Godard, 1960)
Nota: ★★★★☆
Veja também:
Imagem e Palavra, de Jean-Luc Godard