Os poderosos só entendem o tamanho de Lampião após sua impressão em película. Antes talvez fosse apenas um agitador dos rincões, da terra seca, alguém que podia vestir um terno e, entre todos da cidade grande, ir ao cinema na companhia da mulher. Sem ser reconhecido. Do homem, Virgulino Ferreira da Silva, não é possível se aproximar.
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Ao barco, o mesmo recebe a música do grupo que se equilibra. Depois, a música rompe com o próprio tempo, com qualquer sinal de que este Lampião, o de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, pode ser definido. Em Baile Perfumado, o revolucionário tem na canção seu resumo, sua essência, sua contradição: “Veneno, faz o mundo girar”.
Ao mesmo tempo o mal, ao mesmo tempo a necessidade do herói; para outros, o matador. Alguém contra a ordem, a impor a sua. Perfeito para a câmera – a de Caldas e Ferreira, a das antigas imagens feitas pelo sírio-libanês Benjamin Abrahão, mais empresário que artista.
O Lampião em questão se alimenta da tela. Desde o início, sem as roupas pelas quais é lembrado, de terno branco como outro homem qualquer, integrado à sociedade, assiste a um filme no cinema, A Filha do Advogado, de 1926. Mais que a obra em si, importam o ecrã, o ritual de troca, de deslumbre: Lampião reflete a imagem, que depois o reflete.
Como se os cineastas dissessem que nasceu para o filme, enquanto, acertadamente, não se ousa investigá-lo. Quem conduz essa narrativa cheia de cruzamentos e intromissões – nunca com viés histórico em excesso, nunca ficcional ao extremo – é o cineasta estrangeiro. Seu sotaque deixa ver alguém malicioso, o bom negociador.
Abrahão, próximo do espectador, é o rascunho de quem observa, de quem decidiu explorar o país exótico atrás dos guerreiros do sertão contra as autoridades. Não estranha que a foto de Getúlio Vargas paire ao fundo. Menos ainda que o encontro de Lampião com padre Cícero (Jofre Soares) mais pareça sonho que realidade.
Se o olhar estrangeiro distorce, por que Baile Perfumado ater-se-ia ao real? Eis a raiz complexa que liga o grande filme de Caldas e Ferreira à poética raivosa de Glauber Rocha. Mas que fique claro: não são cinemas semelhantes. O que os une é a renúncia ao aspecto real em nome dos mitos perpetuados pela literatura de cordel ou pelo cinema.
Sem interesse aparente para compreender o Brasil, restam ao estrangeiro o registro, a direção dos modelos nos quais os cangaceiros em algum momento se convertem. A câmera coloca-os de cabeça para baixo, o que só escancara a impossibilidade de se dar ao retratado seus verdadeiros traços. Mesmo quando se lida com foto posada.
Em algum momento, a imagem de Lampião converte-se na do homem simples, possível, a ser tocado – sem que o apequene. Ao contrário: faz-se lenda. O empírico reveste-se do onírico, para lembrar Edgar Morin, e a relação passa à esfera interior. Depois da imagem, Lampião torna-se objeto de ódio ainda maior; sua morte torna-se questão de honra.
O filme de Caldas e Ferreira é sobre o cinema sem ser por completo. Na mira do diretor (Duda Mamberti), Lampião (Luiz Carlos Vasconcelos) e seus homens são figuras brutas demais ao jogo de interpretação. Assustam porque são verdadeiros, aos quais o avanço da câmera chega a ser engraçado. O filme do sírio-libanês sobre o revolucionário não por acaso termina censurado, prova maior de seu poder sobre corações e mentes.
(Idem, Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997)
Nota: ★★★★☆
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