Em maio de 1997, os críticos Michel Ciment e Stéphane Goudet entrevistaram o cineasta iraniano Abbas Kiarostami, que acabava de lançar Gosto de Cereja. Em Cannes, o filme valeu-lhe a Palma de Ouro.
Um dos métodos recorrentes em seu cinema – seus documentários e suas ficções – é o do questionamento. Por que o diálogo legitimou a prática dessa forma de ir ao encalço, que você recusa na imagem, quando exclui qualquer panorâmica, qualquer close inquisidor sobre as personagens?
Para mim, tudo provém do questionamento, que é uma forma de curiosidade. Se nos referirmos aos psicólogos e aos psicanalistas, perguntar consiste em fazer o inconsciente surgir no consciente. O cinema pode, às vezes, à sua própria maneira – massiva, popular –, rivalizar com a psicanálise. Se esse filme permitisse, por exemplo, pelo menos que um suicídio fosse evitado… Não porque a religião proíbe, mas porque o espectador tomaria consciência do valor da vida. Setenta por cento das pessoas já pensaram ao menos uma vez em se matar. Se o filme, intervindo no momento certo, der algumas respostas para quem estiver pensando em suicídio, eu terei criado – e esse espectador singular terá criado comigo – algo positivo a partir de algo negativo.
Como você vê o suicídio?
Há dois anos, o vencedor do prêmio Pulitzer escreveu uma carta antes de se suicidar: “Hoje recorro ao primeiro de meus direitos fundamentais para desaparecer deste mundo”. Arthur Koestler [jornalista e escritor] indicava que, no dia em que não se sentisse mais útil aos outros, ele deixaria de viver. No Japão, o suicídio tem, cultural e socialmente, um significado muito particular. O aspecto existencial ou existencialista é mais forte ainda, pois cada pessoa reconhece que tem responsabilidade no curso dos acontecimentos. E quando uma pessoa julga que não está mais apta a assumir suas responsabilidades, ela tem o pleno direito de escolher não viver mais. Na verdade, a tomada de consciência da possibilidade do suicídio nos torna, a meu ver, mais conscientes de nossa responsabilidade em relação à vida. Gosto de Cereja, de certa maneira, adota uma abordagem existencialista da vida. Estamos aqui para fazer alguma coisa, para nos sentirmos plenamente responsáveis por algo. Você pode observar que só por meio do questionamento podemos chegar a esse tipo de raciocínio. O suicídio é proibido no Irã, proscrito como um ato negativo, niilista. Mas cabe à arte colocar esse problema em primeiro plano, chamar a atenção dos espectadores para essa questão de extrema importância. Quando Kierkegaard [filósofo dinamarquês] era jovem, ele teve que responder, na aula de poesia, à seguinte questão: “O que você quer ser? Olhe à volta, as profissões que as pessoas exercem, e escolha a que você deseja para você”. Kierkegaard conta que observava ali um motorista de metrô, aqui comerciantes, lá o pessoal de manutenção de um parque, em suma, empregados que, a seus olhos, ajudavam os outros. Ele sentou-se em um parque e pensou que não queria ter nenhuma dessas profissões. “Eu queria”, ele se deu conta, “incomodar a consciência das pessoas”. Mas é evidente que você cria uma desordem para criar uma nova ordem; se possível, melhor. Distinguem-se três etapas na evolução psicológica. São elas: forming, storming e norming (formação, tormenta, normalização). Essas três etapas só podem surgir do questionamento, da dúvida. Com a condição de que as questões não sejam as mais simples nem as mais amáveis. É preciso enfiar a faca no peito e não hesitar em cutucar a ferida para tirar o que há de mais profundo no homem. É a única maneira de produzir um efeito e, talvez, de exercer influência. Aí está toda a importância, toda a nobreza da arte. O essencial é estar em conflito e se colocar, precisamente, “em questão”.
A entrevista foi publicada na Revista Positif (nº 442, dezembro de 1997) e reproduzida no catálogo da Mostra Abbas Kiarostami – Um Filme, Cem Histórias (CCBB; pgs. 168-170; tradução de Eloisa Araújo Ribeiro). Acima, cena de Gosto de Cereja; abaixo, cenas das filmagens que foram incluídas no encerramento do mesmo filme, com Kiarostami de boné.
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