A felicidade não tem duas faces. O título brasileiro erra. “A felicidade se acumula”, diz o homem, entre a esposa e a amante, duas mulheres louras que o completam. Para esse amor cumulativo, ele vive como um, é o mesmo, à medida que as cores alternam-se na tela, que a obra de Agnès Varda aponta às transformações, também ao equilíbrio.
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O filme não tem confronto até seu drama final. Algum possível embate – ou julgamento – depende do nosso olhar. Há em cena um caso de adultério, e será preciso aceitá-lo ou não.
Perguntas sobre a atitude do homem e de sua amante são diluídas, quase apagadas frente ao visual forte, à indiferença da câmera ao pequeno rastro de culpa. O filme é sobre viver a despeito das diferenças, das mudanças, das estações que passam: começa no verão e termina no outono. Nas duas, com famílias semelhantes, não idênticas.
As estranhas passagens de um girassol a outro, no início, deixam ver a família, ao fundo, em um dos quadros. Ela ainda não tem foco, está presa à natureza, a se formar. O casal e os filhos, em mais um dia no campo, respiram liberdade.
O homem (Jean-Claude Drouot) não pode viver sem a esposa (Marcelle Faure-Bertin), tampouco sem a amante (Marie-France Boyer). Descobre que pode amar ambas. Sente-se completo enquanto as formas cinematográficas empregadas por Varda são outras: com a mulher, o plano longo, a abertura à paisagem; com a amante, cortes rápidos, imagens desfocados ao fundo ou à frente, sensação de desorientação.
Interessante notar a alteração das cores. O verde e o amarelo predominam no ambiente afastado do campo, universo brilhante que simula o sonho. Na cidade, o branco e o azul surgem como contrapontos, e a mulher do protagonista passa, a exemplo da amante, a adotar essas cores. Aos poucos o vermelho dá as caras, como no encontro entre o homem e a nova companheira em um café, entre enquadramentos ousados, planos sem foco.
De tempo em tempo as cores tomam a totalidade do quadro. Difícil encontrar o significado de cada uma delas na passagem das sequências, ou dos capítulos. Na cena de sexo entre o homem e a amante, o branco está nas paredes, por todos os lados, e enche a tela ao término. Para tal momento de carne, devemos preenchê-lo com tonalidades à nossa escolha.
Perto do encerramento, vermelho e azul unem-se e dão vez ao lilás. Mulher e amante estão, enfim, fundidas. É quando a amante passa ao papel da mulher sem deixar de ser quem sempre foi. Ao mesmo tempo, a natureza dá seu recado: chega o outono, as folhas caem pelo bosque, o plano longo impõe-se novamente.
As partes do corpo recortadas no quadro remetem a Uma Mulher Casada, de Godard, lançado um ano antes, em 1964. A anatomia do corpo e o aprisionamento do sexo à forma cinematográfica. Não é possível ver tudo. O ato perde calor, sujeira, realidade.
É, não se duvida, um filme sobre o amor livre, sobre a travessia de uma estação que, perto do fim, encontra sua tragédia. A mulher desaparece após abrigar os filhos em uma cabana de tecido (o que será repetido pela amante). O marido sai à sua procura. O paraíso é então abalado, as pessoas do campo olham à tela. O corpo molhado será abraçado várias vezes ou uma só, em despedida, constatação de que a felicidade não é plena.
(Le bonheur, Agnès Varda, 1965)
Nota: ★★★★★
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