O Iluminado, de Stanley Kubrick

O terror está preso ao controle do tempo. Menos à aceleração, mais à calmaria. Com alguma frequência, após momentos de medo e tensão, Stanley Kubrick recorre à elipse em O Iluminado. Ao tempo, ao senhor que permite a passagem ao “próximo capítulo”, como se voltasse à estaca zero. O tempo corre, o terror arrefece.

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O efeito que se obtém com tal passagem é de falsa normalidade, como se a loucura do protagonista pudesse ser freada, como se ao público sobrasse algum respiro. Mas a cada suposto capítulo, ou passagem, com o avanço dos dias da semana, um novo degrau rumo ao enlouquecimento é descido por Jack Torrance (Jack Nicholson).

A narrativa propõe a evolução da emoção em bloco, dando vez a outro e a outro, e foi proposta antes por Kubrick. Em 2001: Uma Odisseia no Espaço, a própria música de Strauss, em crescente, oferece o efeito de subida, explosão, e retorno à calmaria – ou à falsa normalidade que carrega (ou esconde) inegável transformação.

Em certo sentido, 2001 é irmão de O Iluminado, uma ficção científica e um terror. Em ambos há o caminhar à loucura (da máquina, do homem) e o enclausuramento (na nave, no hotel). Ambos exploram o crescente de um mal que não pode ser explicado. Em um caso, talvez seja culpa da tecnologia; em outro, de espíritos malvados.

Jack, contudo, é o oposto de Hal 9000: para a ficção, Kubrick prefere a ausência de face, a voz calma, ponderada; ao terror, a máscara exagerada, um Jack Nicholson livre para fazer o que quiser. Em ambos, para as perseguições propostas, o diretor tem o tempo a seu favor, avanços a um aparente nada e golpes seguidos pela música, ao ápice da emoção.

Importante notar que O Iluminado nutre-se de súbitas quebras no tempo até seu encerramento, quando o mesmo Jack, perdido entre o labirinto – em si mesmo, em sua prisão e interior confuso -, termina morto, congelado. O que Kubrick propõe não é a queda lenta ou algum instante de cansaço. Ao contrário, volta-se apenas ao corte. Da noite para o dia, do homem em movimento ao homem congelado e de olhos abertos.

Kubrick filma a loucura e, para tanto, espalha diferentes peças: o louco que acredita que pode fazer o que quiser, dar vazão a seus instintos primitivos; a mãe protetora (Shelley Duvall) que precisa salvar o filho e se vê obrigada a atacar o marido; e, por último, a criança que enxerga os mortos, iluminada, a verdadeira protagonista desse filme de terror.

Em algum ponto, todos passam a ver os mortos, inclusive a mãe. Os espíritos revelam o passado, o baile que deu lugar ao banho de sangue, décadas antes, no qual o mesmo Jack esteve para celebrar a maldade. O mesmo Jack a quem a história repete-se, homem que encontra forças para recorrer aos velhos vícios: a bebida e a violência.

O filho é o mais racional, ou o privilegiado: é quem antes de todos os outros, entende os problemas, aquele que, por ser criança, não é levado a sério. Alguém cujo amigo imaginário – de voz mais grossa, como um adulto que vem a seu socorro – surge-lhe de tempos em tempos. Danny (Danny Lloyd), ao contrário do pai, toma forças para não entrar no quarto proibido, onde uma bela mulher converte-se em uma senhora em decomposição.

Por que Jack resolve matar? O mais fácil é apontar à influência dos fantasmas. O próprio Kubrick, em entrevista a Michel Ciment, diz acreditar em fantasmas dentro da história, não em “projeção de psiquismo”. Interessante pensar, contudo, que Jack – com demônios internos que precedem a chegada ao Hotel Overlook – cria seus monstros (duplos) para que se sinta encorajado a praticar o mal, ele mesmo um escritor frustrado que enlouquece à medida que nada consegue pôr no papel.

Danny, ao fugir das visões do hotel e, sobretudo, ao escapar do labirinto, encontra seu próprio caminho longe da sombra do pai. Ao espectador resta a enigmática foto de um baile de décadas anteriores, em salão lotado e com o mesmo Jack Torrance à frente dos convivas. Ou não exatamente o mesmo, pois histórias trágicas insistem em se repetir.

(The Shining, Stanley Kubrick, 1980)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Kubrick indica Kieslowski

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