Os ricos falam do mau cheiro que exala o novo empregado da casa, o motorista. É o cheiro do buraco, do espaço à parte, no qual os mesmos abastados nunca colocaram os pés. Sabem sequer da existência de um túnel abaixo da grande casa em que vivem, segundo porão, espaço para se esconder – para isolar o que incomoda, o mau cheiro.

O sentimento de divisão é assim imposto em Parasita: aqueles que pouco a pouco invadem a casa, os criados, podem fingir em excesso, mas não escapam a essa natureza, ao sinal que aponta às origens. Aponta cada vez mais ao fundo e ao ambiente degradante. Da casa em que vivem, em um declive, para o porão sem luz alguma, para o fundo.
O filme de Bong Joon-ho é sobre a ilusão da ascendência, estar no alto, à cata do sinal de wifi, na escada que dá acesso à bela casa projetada por um renomado arquiteto, no quarto da menina rica enquanto se olha para baixo, para a festa, e enfim se questiona se é possível ser parte daquilo.
O menino é quem abre as portas da grande casa para sua família pobre. Finge ser um professor de inglês. Logo, leva a irmã, que finge ser professora de arte; o pai, que se torna o motorista; e não demora para que a mãe converta-se na criada e cozinheira da família. Os pobres fingem ser o que não são, têm acesso à outra realidade.
A casa – com extensa parede de vidro, abertura para o quintal de grama verde – não mais os enterra. Por algum momento, entre algum divertimento quando os ricos resolvem viajar, eles veem-se como os outros, donos do local, para deitar na grama e usar a banheira, para quebrar copos e garrafas e lançar ao chão o que comem na mesa da sala.
A velha casa é um problema. Dela pouco se vê a rua. Por ali, um homem aparece para urinar nos postes. Os mais pobres assistem apenas a uma parte do mundo do lado de fora, pela abertura estreita, e ainda assistem à parte degradante. Na casa dos ricos, não veem quase nada para fora, como se a altura os colocasse no céu, ou em uma ilha.
Resta, ainda assim, o corredor ao buraco, ao fundo, ao espaço sem vida: enquanto vivem com algum luxo, nos cômodos dos outros, naquele mesmo fim de semana em que os patrões saíram em viagem, descobrem novos parasitas. Uma antiga criada – demitida após a cilada dos empregados – esconde seu companheiro no porão.
Os infiltrados lutam entre si: é preciso brigar para manter o papel que escolheram viver, para longe de suas vidas reais. E tal papel – para que se sobreviva, ou para que ainda se tenha acesso à geladeira da casa, nas madrugadas – é o que torna a situação, no mínimo, bizarra: o acesso ao emprego depende dos falsos currículos e bons modos.
O filme de Joon-ho põe o dedo na ferida: os ricos demoram a enxergar o teatro de trambicagens que nasce na bela casa, como se este, nessa Coreia do Sul de extremos, fosse agora necessário não para se ter um ou qualquer emprego, mas para se ter acesso à fatia de uma vida – a menor delas, ao que parece – que alguns nunca terão.
O que conta mesmo é colocar o pé nesse limite, atravessá-lo um pouco, lambuzar-se com o que há para dentro da bela casa: as guloseimas da geladeira, as delícias da banheira e dos quartos. Ser outro, ainda que por pouco tempo, ainda que para viver um criado – e, por esse parco momento, um criado “diferenciado”, indicado por alguém “diferenciado”.
Passada a farsa vem a tragédia. O jeito é voltar ao buraco, esconder-se, ser o tipo de sempre, sem máscaras. Buracos aos quais o poder público lança veneno para matar insetos, os parasitas que ora ou outra ousam emergir e se infiltrar na vida dos distintos e poderosos que não suportam o cheiro de gente de verdade.
(Gisaengchung, Bong Joon-ho, 2019)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
