Em preto e branco, espera-se uma aproximação ao índio: ao longo de Sangue de Heróis, primeiro filme da chamada Trilogia da Cavalaria de John Ford, ainda sobra um pingo de otimismo. A personagem de John Wayne, de aparência mais jovem que o comum, tenta o diálogo, evitar conflitos, o que logo se revela inútil.
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Não demora para que os homens brancos marchem em direção aos nativos – armas em mãos, gritos, a pompa da cavalaria que curiosamente sucumbe à onda dos índios (os “selvagens”) que chegam à contramão. Sobe a poeira, homens ficam ilhados, tenta-se o contra-ataque – outra vez um gesto inútil.
O fracasso explora o fantasma da Batalha de Little Bighorn, na qual os índios levaram a melhor, na qual o conhecido general Custer encontrou seu próprio fim. Ao cinema hollywoodiano o troco seria dado sem que se mudasse completamente o desfecho, ainda que o heroísmo fosse exacerbado: na pele de Errol Flynn, em O Intrépido General Custer, de Raoul Walsh, o mítico general é o último a cair e espera em pé seu golpe final.
O ensaio em preto e branco para algo parecido é, para Ford, a maneira de mostrar alguns erros dos soldados sem que se perca o heroísmo. Mais ainda: sem que se deixe sumir o elogio ao Exército e à bandeira americana. Ford nunca escondeu seu patriotismo, ainda que fosse inteligente o suficiente para não soar bobo com suas homenagens.
Sangue de Heróis tem como protagonista o mais desagradável dos homens em cena. Rascunho de um grupo, tipo militarizado, mecânico e, como se imagina, sem humanismo. Quem fica com o papel é Henry Fonda, o novo tenente-coronel do destacamento que ao fim enfrenta os índios.
Com mechas brancas no topete e nos fios sobre as orelhas, não chega a ser o vilão. É duro e, dirão alguns, correto. Ao fim, ganhará uma pintura em sua memória, além de lembrado por contadores de histórias que alguns chamam de jornalistas – mesmo depois de levar algumas dezenas de homens à morte na batalha contra os índios. Ele incluso.
Há, por trás desse homem, a derrota pela soberba, o branco que não consegue se imaginar no mesmo plano do nativo, a quem a filha, tão bela, só poderá casar com um homem de sua classe – para ratificar que, ao homem americano que se avoluma entre a poeira, à porta de sua derrota, não resta nada senão as boas, velhas e cansativas tradições.
Pois Ford, ao longo da trilogia, faz filmes sobre costumes. Sobre o que é ser americano, ou sobre o que é ser um americano com raízes estrangeiras tentando dar vida à sua nação. Americano que não esconde vícios, graça, inclinação à idiota briga entre amigos, rinha entre machos em taberna qualquer, aos socos e pontapés.
São filmes sem vilões, sem obstáculos claros, a fazer valer a vida das pessoas naquela terra – em preto e branco ou em cores – em que se estabelece a ordem do homem branco, invasor que se crê invadido, a levantar fortes de madeira para introduzir sua proteção, suas próprias cidades, com damas cortejadas pelos soldados com botas sujas de barro.
Ao fundo, a paisagem do Monument Valley, em Utah, a terra de John Ford. Com Legião Invencível, o cineasta passa à terra vermelha como sangue, ao céu azul que nem sempre se vê, à tempestade que se avizinha enquanto se locomove a diligência. Quem está à frente dessa nova aventura, outro faroeste de costumes, é Wayne.
Do coadjuvante de aspecto jovem de Sangue de Heróis ele passa a protagonista absoluto, ao mesmo tempo líder militar e pai espiritual de sua turma, alguém que, após a morte da amada, casou com a farda, com a terra, entre homens de fala alta, entre alguns jovens que insistem em negar suas paixões e envelhecem rápido.
Em viagem por essa terra avermelhada, de beleza que chega a indicar a falsidade do todo, o capitão Nathan Cutting Brittles (Wayne) deixa escapar sua maciez, aos poucos, pela forma camarada como guia os demais, como repreende os desmiolados, como observa entre o terror e a experiência, sem mostrar choque, um ataque dos índios aos homens brancos.
Tem sua história inscrita na expressão madura, para além daquelas rochas que se acomulam ao fundo, destinado a ficar, a morrer por ali, a fazer companhia à amada morta cujo túmulo serve-lhe de companhia. Repete o costume de dois heróis anteriores, do mesmo universo fordiano: o juiz Priest de Will Rogers e o Abraham Lincoln de Henry Fonda.
Mesmo pela leveza Ford levava-se a sério: seus heróis viviam, deixavam-se tocar e, se preciso, conter. Sabiam da possibilidade de errar e, como ocorre a Nathan, assumiam o fracasso da missão. De novo, o diretor está mais interessado em pequenos casos ao meio, tipos, tombos, trejeitos, mais que em batalhas e aventuras.
Nada diferente em Rio Bravo, última parte da trilogia. De volta ao preto e branco, à aparência árida em que a terra perde vida, à distância necessária – para alguns problemática – dos índios que se põem a cantar para atrair os comparsas e que raptam crianças. Wayne, outra vez o protagonista, é o homem experiente.
Nem tão novo quanto na primeira parte, nem tão velho quanto na segunda. Seu amor ainda vive e é interpretada por ninguém menos que a irlandesa Maureen O’Hara, dama fordiana por excelência. Por ali também surge o filho do herói (Claude Jarman Jr.), adolescente que tira a camisa e ergue os punhos para brigar, que finge não notar o pai e tenta provar ser homem.
A vida entre militares aparenta estabilidade até a invasão dos índios. A mulher amada vê-se entre uma espécie de furacão: homens por todos os lados, tiros, poeira branca contra a paisagem e vilões mortos. Como antes, a personagem de Wayne abandonou tudo pelo Exército, postado próximo ao rio Grande, divisa com o México.
Chama-se Kirby York, mesmo nome de sua personagem em Sangue de Heróis. Talvez seja a mesma. Com sua trajetória, Ford completa um ciclo que começa com o rapaz que tenta avisar seu superior da necessidade de diálogo e não é ouvido; passa pelo homem à sombra da morte de Custer, que continua a crer no fracasso de seu avanço; chega à figura ranzinza que reestrutura os laços familiares ao mesmo tempo que louva a bandeira.
A trilogia é entrecortada por situações cômicas, personagens secundárias e inesquecíveis, espécie de família que Ford gostava de cultivar – enquanto Wayne, com alguma constância, pairava sobre todos. É a alma a guiar jovens soldados, damas indefesas e velhos companheiros beberrões, dono de sentimentos ocultos pela carapaça.
(Fort Apache, John Ford, 1948)
(She Wore a Yellow Ribbon, John Ford, 1949)
(Rio Grande, John Ford, 1950)
Notas:
Sangue de Heróis: Nota: ★★★☆☆
Legião Invencível: Nota: ★★★★☆
Rio Bravo: Nota: ★★★★☆
Foto do topo: Legião Invencível
Foto do texto: Rio Bravo
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Vídeo: O Homem que Matou o Facínora
Bela resenha. Vejo a cada dois anos essa trilogia. Ford é gênio.
Que bom, ver sempre essas belezas faz bem. Abraços!