1984, de Michael Radford

O Winston Smith que resulta do fim da experiência, vítima da polícia do pensamento, é, na pele de John Hurt, a forma perfeita para quem tentou imaginar a personagem de George Orwell, do famoso livro 1984: cadavérico, dentes apodrecidos, sujo, esfarrapado, sem força para parar de pé, enquanto tenta responder às questões do algoz.

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O tratamento dado por Michael Radford nessa adaptação de Orwell, com roteiro de autoria do cineasta, torna a sociedade do futuro um retrato de escombros do passado, lixo composto de pedras pelo chão, muros acinzentados por todos os lados, a imagem opaca das teletelas que estampam, em todos os lugares, o rosto do Grande Irmão.

A miséria tem a ver com uma sociedade impedida de pensar, de se libertar pelo sexo, de ler algo que o líder não goste ou aprove, sem queimar livros ou reescrever o passado. Primeiro domina-se este, o antes, a História; depois, pelas mesmas telas, chegam as mensagens lançadas à massa, exaustivamente, com a versão do partido.

Pois o partido substituiu o Estado nesse filme político, o homem converteu-se em peça de trabalho a ser substituída, o espaço da cidade em cenário de guerra que o mesmo partido deseja empregar. Em guerra ou não, com bombas vindas do inimigo ou não, a Oceania será sempre assim, terra de medo e conflito.

Se “liberdade é escravidão”, como apregoa um dos slogans do regime totalitário, não há motivos para desviar da guerra. Radford constitui o cenário de uma Londres que parece ter saído do conflito nuclear, de proporções desastrosas, rumo a um tempo sem tempo, sem passado nem futuro, no qual a farsa apodera-se das pessoas por meio de ideias.

A mensagem é forte e está no livro de Orwell. O clima aqui apresentado pertence a Radford. Hurt, seu pretenso herói, homem de consciência dobrada pela dor, leva o público a uma jornada de mal-estar. Entre a multidão aos gritos, no início, ele brada à grande teletela, ao rosto sem vida, ao homem de bigodinho que remete a Stalin.

A sociedade de “botina contra a face” logo se desenha pelo medo: seus membros são vigiados, comem como em um presídio, vivem nos pequenos prédios sem a presença do sol como em antigos países socialistas da Cortina de Ferro. A padronização acompanha o mesmo medo, a necessidade da vida no caixote, aos olhos do Grande Irmão.

Winston apaixona-se por Julia (Suzanna Hamilton), uma das jovens que grita, como ele, entre a multidão. Todos gritam contra o algoz, o líder dos rebeldes, e cantam apaixonadamente o hino da Oceania, essa terra sem paz, como uma grande fábrica de fundição. Os membros, por isso, vestem-se como operários, avessos aos proletários que ousam se rebelar.

Julia confessa-se a Winston: o bilhete consta um “eu te amo”. Perseguido como é, como todos, ele tem algum receio. Passa a se encontrar com a mulher em um campo afastado, verde, no encontro do filme com o respiro, com o mundo de antes.

O que está por vir, o futuro distópico, choca-se com a natureza virgem, com árvores e bosques ainda não possuídos pelo homem, único ambiente em que Julia e Winston respiram com algum alívio – o qual, não por acaso, é materializado no sonho dele como o espaço encontrado após a passagem pelo famoso quarto 101.

Está enganado. Ao fim, descoberto, torturado, culpado por amar e desenvolver algum senso crítico a partir do livro do líder rebelde, Winston descobre o que há no quarto 101: seu pior pesadelo, seu medo guardado. Ao trazer o trauma à baila, o algoz, um assustador Richard Burton, prova para Winston a necessidade de eliminar o passado.

Os ratos consomem Winston. O filme todo é sobre essa consumação. Os ratos de seus sonhos, sobre o cadáver de sua mãe, são partes desse meio de escombros, imaginário de uma criança culpada por fugir com o chocolate da família em meio à miséria. O falso herói não terá mais nada, sequer um pesadelo para enfrentar e guardar para si.

(Nineteen Eighty-Four, Michael Radford, 1984)

Nota: ★★★★☆

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