As seis histórias de Relatos Selvagens evocam situações conhecidas: um grupo de pessoas com um inimigo em comum, o reencontro da vítima com o algoz, a briga no trânsito, a luta contra o sistema, o rapaz rico que atropela inocentes, a festa de casamento que se transforma em confusão.
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Cada uma das partes felizmente subverte o esperado. E, em cada uma, as personagens apelam sempre à violência, forma encontrada para resolver problemas em tempos de civilidade como propaganda.
Os créditos de abertura mostram animais. Ainda antes, no primeiro episódio, uma bela mulher, modelo, lê uma revista com fotos de animais selvagens. O diretor Damián Szifrón expõe espaços nos quais os bons modos dão vez à selvageria. O que se vê são relatos, partes, momentos decisivos, atitudes extremas, mal calculado.
Para cada parte, vale ressaltar, há objetos do mundo moderno, sinais que tranquilizam e dão conforto. Contudo, ora ou outra deixam de ser: o avião não é mais seguro, o veículo blindado não pode salvar o executivo. O jantar, o casamento e o espaço da família não induzem mais aos rituais de uma sociedade à sombra da normalidade.
Nesse terreno de gente com selvageria aflorada, sobressai-se, em momentos, mais o cálculo que o instinto. Não são apenas animais. O filme cresce quando se vê a elaboração da vingança, quando se passa do golpe ao pensamento, ao plano de aniquilação – para só depois ter sua execução.
São planejadas a morte dos passageiros de um avião, a morte de um mafioso por envenenamento em um restaurante, a explosão de um estacionamento de guinchos, a liberdade para o jovem criminoso que atropelou inocentes – no primeiro, segundo, quarto e quinto episódios, respectivamente.
Para Szifrón, a situação esperada é apenas o ponto de partida para a revelação dos calculistas, motor do mal neste indigerível mundo moderno. Difícil não rir com essa comédia ácida, com seus sarcasmo e ironia: a todo o momento, o espectador é testado, o que prova sempre o poder do texto, também o da direção.
O primeiro episódio, por exemplo, tem toques de Buñuel. Não existe para fazer sentido. É como um desejo, uma brincadeira: lotar o avião de inimigos, pilotá-lo e colocar tudo a perder, lançando a máquina à terra. Morte coletiva, catástrofe, sonho, plano perfeito.
No episódio do atropelamento, o pai deseja pagar 500 mil dólares para que seu caseiro assuma a culpa do filho pela morte de uma mulher grávida – situação parecida àquela explorada no drama 3 Macacos, do turco Nuri Bilge Ceylan. A certa altura, outros envolvidos no plano também cobram seus preços para ocultar o crime, incluindo o fiel advogado da família. O pai e pagador percebe que o plano ficará caro demais – e até seu caseiro, homem de aparência modesta, quer cobrar um pouco mais.
Nesse caso, tudo está à venda. O animal revelado é da pior espécie: o predador que sobrevive em terno e gravata, que não aceita se despir facilmente, cuja mulher está disposta a qualquer coisa para proteger o filho criminoso. O mais irônico é que talvez nem todo o dinheiro do mundo esteja disponível para salvar o filho inconsequente.
Após episódios incríveis e outros menos inspirados, o capítulo final é talvez o mais engraçado: a festa de casamento em que nada dá certo. Ou na qual nada pode dar certo para que o casal encontre seu jeito de se acertar. Em Relatos Selvagens, esse episódio destoa: seu encerramento é feito de sexo, não de violência. Aos animais, dois traços definidores. O público fica com os pedaços do bolo do casamento, sujeira e sangue.
(Relatos Salvajes, de Damián Szifrón, 2014)
Nota: ★★★★☆
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