Os três filhos da grande casa, da velha Espanha, rodeiam Ana, a recém-chegada. Cada um deles a servir uma representação. Há o militar impotente, o pai de família assediador, o religioso culpado. A certa altura, todos partem para a violência. Pobre Ana, como o título não deixa mentir: a bela está rodeada – e será perseguida – pelos lobos.
E ainda que as representações pareçam óbvias, Ana e os Lobos recusa a definição fácil: sua protagonista não tem origem, ao contrário dos outros; ela assiste àquele redemoinho de intenções sem que seja a vítima completa, tampouco se põe em um universo imutável: anos mais tarde, retornaria àquela mesma casa para a festa de aniversário da matriarca, em outro filme do mesmo Carlos Saura, com as mesmas personagens, Mamãe Faz 100 Anos.
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Da Espanha isolada e desértica, de homens que cercam a mulher, Saura salta à representação farsesca da mesma nação. Antes e depois de Franco, ainda se convive – em menor ou maior dose – com fantasmas que ferem a liberdade, fardas que servirão a novos corpos.
Ana, a estrangeira, primeiro é a criada, a professora de três meninas. No filme seguinte, é a convidada para a festa de aniversário da senhora da família. Interpretada por Geraldine Chaplin, surge entre o campo seco, mala à mão, rumo à casa desses homens estranhos, logo aos sinais do militarismo, da Igreja e da família – em suas piores formas.
A beleza de Ana incomoda. Para o filho religioso, Fernando (Fernando Fernán Gómez), ficam os cabelos, o jeito doce, a aparente santidade; ao militar, José (José María Prada), o cuidado com sua coleção de fardas, como uma esposa obediente à qual é dada a permissão para frequentar o museu da casa; ao terceiro, o assediador, fica o corpo, a carne, a vontade de tomá-la a todo custo. A cada um, Ana será possuída de uma forma.
Ana, em momentos, é a garota; em outros, a mulher formada, de vestidinho curto, de bicicleta pelos mesmos campos, atrevida, exibida. Saura trabalha com essas formas para confundir, faz o público perder-se: dos homens é possível ver tudo, ou quase tudo, ao passo que de Ana não fica muito senão uma estranha abertura a intenções, nem boa nem má.
Mas Ana não existe para ser compreendida, ou para se deixar revelar. Não será assim, também, em Mamãe Faz 100 Anos, no qual retorna casada, mais frágil, vítima do tempo, ou do gênero comédia: poderá ser vista às lágrimas quando descobre que seu companheiro fez sexo com uma das meninas da casa, ou como heroína ao ser convocada pela voz da velha mamãe – que tudo vê e penetra – para impedir que a matem e vendam a propriedade.
No franquismo vivo mas decrépito de Ana e os Lobos, o ambiente cheira à velhice, à nostalgia pobre dos que se protegem pelas estátuas fardadas, a caráter, ou pelos religiosos que, delirantes, acreditam ver a verdade quando se impõe apenas a representação: em frente à casa, desfilam todos aos olhos de Fernando, convertido em eremita.
No franquismo morto, feito espectro, de Mamãe Faz 100 Anos, filhos e outros parentes insistem no mal: sem poder, endividadas, não resta nada a essas pessoas senão matar a centenária, vivida por Rafaela Aparicio. Será servida como banquete, em festa macabra, a ser morta no dia de seu aniversário.
A perversidade de Saura serve tão bem à tragédia quanto à farsa. A adaptação de suas personagens a essas mudanças prova o contorno onírico de Ana e os Lobos, à contramão de um realismo curioso, absurdo, de Mamãe Faz 100 Anos: Ana não foi assassinada pelos três irmãos; continua viva, feliz, casada, ainda que atraída àquele velho local.
“Se não, o que representa aquela mansão isolada, mas solidamente construída sobre uma meseta desértica, que não a capital da Espanha, Madri?”, questiona o crítico de cinema Tuio Becker. Se no primeiro filme a casa ainda é vista como sistema inabalável, protegido, no seguinte será um espaço a ser vendido, vítima do avanço da cidade.
Ana e os Lobos representa a morte da visitante, intrusa, seu consumo, a revelação de seres abomináveis que a rodeiam. No segundo filme, o militar está morto, Franco também. A matriarca insiste em continuar ali. Mamãe Faz 100 Anos, sob os alicerces da velha casa, da velha Espanha, é, para o desespero dos conspiradores, sobre sobreviver.
(Ana y los lobos, Carlos Saura, 1973)
(Mamá cumple 100 años, Carlos Saura, 1979)
Notas:
Ana e os Lobos: ★★★★☆
Mamãe Faz 100 Anos: ★★★★☆
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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