Me aborrece muito falar de forma direta de mim mesmo, de meus filmes. Então, quando tenho que falar do filme, falo de mim e, quando tenho que falar de mim, falo de ficção (risos). Falo mal de mim, quero dizer, do filme. Com efeito, curiosamente, fui educado e mal-educado numa mesma rua, na mesma rua de Cáceres, de uma província extremenha, de Extremadura [região da Espanha], de onde vieram quase todos que conquistaram, não vocês, mas o resto da América Latina. Vieram de lá. Na mesma rua, estava o colégio dos salesianos, em que me mal-educavam, e, quatro portas acima, estava o cinema, para onde eu escapava, a fim de ver filmes, e aí recebia o que pensava ser minha educação autêntica. Isto, por si, já era tergiversar a realidade. Para os padres o que alegavam me dar era a educação. E o cinema, ao contrário, era perversão. Mas dentro do meu universo, eu me sentia mais próximo dessa “perversão” do que da “educação” – má educação – dada pelos padres. Minha educação era católica, cristã e, como todos vocês sabem, não sou eu quem diz, está baseada no pecado. Quando o Papa se manifesta, só fala de pecado. (…) Não creio que nenhuma criança tenha feito algo ruim. Não creio que, pelo simples fato de ser uma criança, pelo simples fato de haver nascido, mereça qualquer castigo. Isso era o que eu já intuía. Depois, quando ia ao cine, nessa rua, já em princípios dos anos 60, passei a ver filmes pesados. Não sei como, mas me deixavam entrar. Recordo que cheguei a ver Gata em Teto de Zinco Quente. Filmes que hoje não sei se veria. Filmes de [Ingmar] Bergman. Via, então, inclusive [Michelangelo] Antonioni. Não me digam porque, mas o entendia. Quando via Antonioni, aparecia uma mulher muito chata, dizendo a [Marcello] Mastroianni num cabaré: “Aspeta che credo che ho trovato una idea [Eu acho que acho que encontrei uma ideia]” (faz gestos). E depois falava dessa ideia. E depois, falava desta ideia que eu nem sabia qual era. Mas, quando se falava do tédio, da aventura, eu entendia o que era o tédio. Eu tinha nove anos, vivia num pequeno povoado e entendia perfeitamente o que era o tédio pequeno burguês de que falava Antonioni. Por algum motivo, creio que o cinema se comunicava comigo de um modo especial, autêntico, e me punha em contato com um mundo, talvez paralelo, mas um mundo em que minha sensibilidade encontrava sua linguagem, ou que usava a mesma linguagem. E muitas vezes, nesse cinema marcado, na época, por Elizabeth Taylor, por Tennessee Williams basicamente, por dramas em que os personagens estavam condenados ao inferno, segundo os padres. E isso me criava problemas, pois, pensava: “se gosto disto, se me identifico com o que fazem essas pessoas, acho que estou condenado ao inferno”, o que é uma coisa horrorosa, mesmo que se diga de brincadeira, para um menino de 9 anos saber que, por algo de que não é culpado, está condenado. Bem, então eu me disse: o melhor é aceitar, estou condenado, o Papa me condena, os padres me condenam. Já que estou condenado, vou desfrutar (risos). Não fazia nada de grave. Por exemplo: não deixava de respeitar os padres…
Pedro Almodóvar, cineasta, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura (6 de novembro de 1995; leia aqui a entrevista completa). Acima, Almodóvar nas filmagens de Kika e, abaixo, cena de A Má Educação.
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