A Estrutura de Cristal, de Krzysztof Zanussi

Os apontamentos do visitante sobre o isolamento do anfitrião demoram a causar algum conflito entre ambos. Quando causam, não chegam a afetar a amizade. O visitante – pela neve, em lugar tão distante – vem a bordo de seu Fusca e permanece dias, semanas, talvez meses na moradia do amigo. Não se sabe o tempo exato desse reencontro.

Os amigos divertem-se entre a neve, conversam sobre seus estudos, sobre física, sobre o infinito, mais tarde sobre Tchekhov, quando, por acaso, reproduzem uma imagem que faz pensar nas histórias do dramaturgo. A essa altura de A Estrutura de Cristal, nós acreditamos saber o suficiente sobre esses homens à frente da história.

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O anfitrião, Janek (Jan Myslowicz), escolheu viver em um local isolado após se casar. Distante de tudo, passou a cuidar de uma estação meteorológica. Como se saberá mais tarde, a partir do amigo e visitante, ele sofreu um acidente que o manteve seis meses preso a uma cama, depois de tentar escalar uma montanha.

O visitante, Marek (Andrzej Zarnecki), viajou o mundo, caminhou por diferentes locais, países, foi aos Estados Unidos e assistiu a uma montagem de As Três Irmãs, justamente de Tchekhov, em Paris. Suas histórias dão o sentido de libertação que o filme, na forma, sempre nega, enquanto as personagens vivem dias de felicidade.

Na companhia de Janek em seu refúgio está sua mulher, Anna (Barbara Wrzesinska), professora de escola primária. Em diferentes diálogos e passagens, o visitante tenta convencer o anfitrião a ir embora, a voltar a viver na cidade, sem que isso gere entusiasmo no outro. O amigo que veio de longe não entende o que prende o outro àquele local.

Em seu primeiro longa-metragem para o cinema, Krzysztof Zanussi extrai muito com muito pouco, oferece uma história na qual todo o conflito repousa em intenções, algum olhar cruzado, alguma expressão fechada, nas entrelinhas: esses homens e essa mulher, tão próximos, entendem-se sem que precisem falar alto, ou falar. Zanussi também estabelece, logo em sua largada, o que será uma tônica em seus filmes seguintes, pelo menos em alguns dos melhores: os dilemas morais de personagens em meio ao imobilismo de um velho mundo comunista, seres que duelam pelo diálogo e desejam fazer valer a inteligência.

Boa parte da beleza do filme – sem que se exclua o visual, com a fotografia deslumbrante de Stefan Matyjaszkiewicz – está justamente nos diálogos e na contenção do drama. Em um momento especial, os amigos discutem o infinito, o ponto em que não há tempo, em que nada acaba. O conceito de infinito, diz o anfitrião, passou a interessar somente à matemática.

Naquele local isolado o tempo parou: o dia em que Marek vai embora é idêntico ao dia em que atracou ali. Nada muda, embora, inegável, o tempo tenha corrido – dias, semanas, meses, não se sabe. Os amigos duelam em silêncio, sem dizer o que talvez gostariam de dizer, à medida que nos rendemos à percepção de um estranho amor que não chega ao toque.

É de um amor diferente – não necessariamente estranho, tampouco incomum – que fala Zanussi nesse grande filme, o amor entre opostos, o sentimento inconfesso: o homem que decidiu ficar, que se prendeu ao tempo e talvez tenha esquecido dele, contra o homem que veio de longe, vivido, que assistiu ao seu próprio tempo e ajudou a fazê-lo. Quando Janek diz que tem 36 anos (ele tem dúvidas sobre a idade), o outro não se conforma com o tempo que pode ter perdido, com a vida que talvez tenha deixado de viver.

A certa altura, os amigos cruzam um cemitério. Janek retira a neve do túmulo de um desconhecido. Não se vê nome algum na lápide, apenas uma frase: “eu era quem você é. Eu sou quem você vai ser. Lembre de mim para que alguém venha a lembrar de você”. Ajuda a compreender o filme: o que vence o tempo e conduz ao infinito é a relação entre pessoas, o que uma deixa a outra, as partes de alguém que levamos na bagagem.

(Struktura krysztalu, Krzysztof Zanussi, 1969)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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