O cinema, ao mágico, é o veículo perfeito: a técnica que possibilita o truque, o intervalo que desaparece, a continuidade facilitada. No mesmo palco que nunca abandona, a alguma distância segura da câmera, o suficiente para que deixe ver seu corpo todo, Georges Méliès revela-se o pai do cinema espetáculo, para além do registro.
ACOMPANHE NOSSOS CANAIS: Facebook, YouTube e Telegram
A história é conhecida: homem dos palcos, ele assistiu a uma das primeiras exibições dos filmes curtos dos Irmãos Lumière. Encantou-se com o cinematógrafo, ainda antes deste se transformar em cinema e carregar uma linguagem (depois) estabelecida. Méliès não foi o fundador de tal linguagem sofisticada, ainda que tenha experimentado a importância da montagem – e a aplicado – a favor da ilusão.
Com os Lumière, o cinema encaminha-se ao real, ao documentário; com Méliès, segue trajetória oposta: não seria apenas um veículo de registro ou objeto científico, mas estaria – como rodas-gigantes, trapezistas, palhaços – a serviço do espetáculo de circo. Por outro lado, Méliès não negaria sua posição no teatro, como reflexo do templo.
O mágico adora castelos e demônios. Os ambientes de terror estão todos ali, entre bruxaria, fogo, cabeças expressivas. Em Le Chaudron Infernal, de 1903, um Diabo verde lança mulheres à fogueira. Em O Desfile Infernal, do mesmo ano, outra vez surge a figura mefistofélica, vivida pelo próprio Méliès.
Tudo converge ao misticismo: Barba-Azul, de 1901, conta a famosa história do homem que se casa pela oitava vez e, em cômodo proibido para a nova companheira, guarda os cadáveres das anteriores. Os espíritos das outras mais tarde se rebelam. A nova mulher tem pesadelos. Os espectros retornam para atacar o vilão e, como mágica, voltam à vida.
Neste caso a estrutura é robusta: o diretor conta com vários atores, mais de um cenário, figurinos aos montes, como se viu no seminal Viagem à Lua, seu trabalho mais lembrado. Deriva deste, claro, o extraordinário O Eclipse do Sol com a Lua Cheia, sobre o encontro dos astros, talvez a primeira vez em que se sugere o sexo no cinema.
Na tela, as cabeças do Sol e da Lua encontram-se. O segundo esconde-se atrás da primeira, que não oculta seu rosto de desejo – tampouco sua mudança de expressão à medida que toma distância do Sol, com o qual poucas vezes se cruza nesse espaço escuro feito de tecido, nas invasões de Méliès aos contornos da face.
Outra obsessão do mestre, por sinal: O Homem com a Cabeça de Borracha mostra a cabeça crescendo, a do próprio autor, inflada por seu duplo. Quatro Cabeças é Melhor que Uma é outra brincadeira feliz na qual o realizador multiplica seu rosto e o coloca nas cadeiras ao lado. Também não se pode esquecer da multiplicação em O Melômano.
Dos primórdios, fiel ao tablado, o cineasta não precisa mais que si próprio para fazer valer a forma. As novidades pululam nos primeiros dias do cinema. A mágica ganha um atalho poderoso. São vários os filmes em que Méliès está sozinho em cena, como Le Roi du Maquillage, em que as pinturas do artista são levadas para sua face.
Nesse curta-metragem de 1904, ele aproxima-se da câmera – ao contrário da maior parte de seus filmes, na qual predominam planos médios. Em Méliès, o flerte com o close-up pode ser visto nas cabeças aumentadas. Homem do palco, ele ainda resistia: esse caminho era uma das artimanhas para erigir o truque, não para fazer avançar a linguagem.
O místico e a ciência encontram-se nesse cinema pioneiro. Os donos das lunetas vestem-se como mágicos, observam o espaço de figuras demoníacas, de monstros verdes (na versão colorida à mão), da Lua como rosto coberto de massa e, em Viagem à Lua, com o qual o foguete colidirá. Poucas imagens resumem tão bem a magia da sétima arte, ao mesmo tempo falsa e verdadeira: o espetáculo de matinê e o sonho de atravessar o cosmos.
O pioneiro só podia mesmo ser um ilusionista. A Lua que avança à tela – certamente assustadora a qualquer criança, ou a qualquer adulto de 1902 – serve, sem exageros, como alicerce a uma arte que não cansou de voltar aos efeitos mágicos, ao antropomorfismo sem limites que, décadas a fio, continua a dominá-la.
Foto: O Eclipse do Sol com a Lua Cheia
Veja também:
Steven Spielberg: o fracasso do mundo adulto