O protagonista, rascunho da juventude política dos anos 1960, proclama a morte do autor: “O idiota que fez esse filme idiota nunca existiu”. Ao que parece, e sem perceber, o “idiota” é ele mesmo. Rumo à morte – ou ao suicídio – do diretor do filme, a personagem deseja dar autonomia às suas imagens, à câmera que capta o mundo ao redor.
ACOMPANHE NOSSOS CANAIS: Facebook, YouTube e Telegram
A morte do autor, diz Nagisa Oshima, está alinhada aos ideais políticos da época, aos jovens que queriam a revolução, registrar a realidade para além do aparente conceito burguês da autoria, como se a obra não precisasse de um nome por trás, uma “figura paterna”. O Homem que Deixou Seu Testamento no Filme é sobre uma busca frustrada.
O protagonista, Motoki (Kazuo Goto), é um realizador de filmes. Une-se aos amigos para, com uma câmera 8mm, registrar a “revolução”, os avanços de grupos organizados em seus protestos contra o governo. Tem início com o chacoalhar do objeto, com sua consequência: as imagens trêmulas. O protagonista quer retirar a câmera do homem que a conduz.
O que vem depois dá o tom: aquele que registra corre para o alto do prédio, suicida-se com a câmera na mão. Motoki consegue pegar a câmera e é perseguido pela polícia até ser detido. Em seguida, acorda rodeado pelos amigos, em segurança, enquanto repete que o outro está morto – sem saber que o outro é ele próprio, que o suicídio pode ser fruto de seu delírio enquanto se exercitava para matar o autor em si mesmo.
Por que matar o autor? “A descrença na arte cresce em razão direta à descrença política, e o fracasso da revolução é também o fracasso do cinema de autor”, afirma Lúcia Nagib em Nascido das Cinzas – Autor e Sujeito nos Filmes de Nagisa Oshima, ao abordar a obra, também conhecida como História Secreta do Pós-Guerra Após a Guerra de Tóquio.
Descrente em relação ao mundo, o autor suicida-se para deixar o mundo falar por si só, o que compõe a ideia que norteia todo o filme de Oshima. Após escapar da polícia, Motoki recebe a companhia de Yasuko (Emiko Iwasaki), companheira do diretor que teria se suicidado.
Em investigação sobre o autor que não reconhece, Motoki vai aos locais presentes nas imagens dos filmes da câmera. Antes, projeta-as – até então, recusa-se a reconhecê-las como suas – na tela branca para, sobre a mesma, ver o corpo nu da jovem amante, à frente da luz, na fusão de vida e filme, colagem que não deixa ver bem nem uma coisa nem outra.
O corpo nu, contudo, faz com que ele não queira fazer sexo com ela; depois, com a menina atrás da tela, sem luz sobre a pele, passa a tocá-la, como se fosse preciso separá-la do universo comum, recortado, projetado pelo filme – imagens cotidianas de certos espaços da cidade, como ruas, pontes, linhas de trem e telhados de um bairro.
Na busca pelos locais, tentativa de descobrir se o autor existe, Motoki acaba encontrando a casa de sua mãe. Não há suspense ou surpresa: ele é o realizador. Em um dos quartos da casa, coloca-se a observar os mesmos telhados citados, pela janela, do ponto exato em que captou as imagens do filme – imagens que sempre retornam ao autor.
Ao filmar a mesma paisagem que o outro filmou, ele acredita que pode fazer o outro desaparecer. A companheira vê o oposto: diz que fará o outro viver nele. O jogo de duplos continua até a repetição da morte inicial, quando o jovem agitado, pelos passos do autor, não encontra outro senão ele mesmo, a escadaria, o prédio, a morte (talvez).
Ao seguir esse rapaz magro, atrevido, espécie de Pierre Clémenti japonês, Oshima apresenta toda a frustração de uma geração que, sem a realidade desejada, abraçou a si própria, ou apenas a arte que a consagrou. Oshima, lúcido, não recusa a autoanálise, embalado pelas experiências políticas e estéticas da época.
(Tôkyô sensô sengo hiwa, Nagisa Oshima, 1970)
Nota: ★★★★☆
Veja também:
15 obras-primas que saíram de Cannes sem nenhum prêmio