Quando Kubrick ligou, perguntou se eu gostava de Kieslowski. Eu disse que tinha visto apenas A Liberdade é Azul, que achei interessante, mas um pouco forçado. E que tal o Decálogo? Nunca ouvi falar. Imediatamente, ele me enviou duas fitas de vídeo contendo o conjunto de filmes, sobre os dez mandamentos, que Kieslowski produziu para a televisão polonesa. (…) fiquei me perguntando que tipo de lição eu deveria aprender com o movimento livre e constringente de histórias tão diversas. Será que Stanley queria fazer o Schnitzler [o escritor Arthur Schnitzler] tão aberto e verborrágico quanto o Decálogo? O única coisa que Kieslowski tinha em comum com Kubrick era uma obsessão por coisas de mau gosto. O episódio sobre a morte de um motorista de táxi e depois sobre o enforcamento de seu assassino [Decálogo: cinco] era tão desagradável e obcecante quanto qualquer coisa em Laranja Mecânica. Sua falta de elegância quase o fez impossível de ser visto até o fim. A única fraqueza nesta parte era a observação óbvia do assassino odioso de que as coisas poderiam ter sido diferentes se ele tivesse ficado em sua cidadezinha. Diretores de cinema geralmente acabam usando as “viradas” das narrativas elegantes; o resultado raramente é tão sofisticado quanto sua visão.
(…)
Stanley Kubrick: Então, o que achou do Kieslowski?
Frederic Raphael: Incrível.
S.K.: Vou contar o que é incrível: ele fez os dez em um ano. (…) Dez filmes em um ano. Dá para imaginar?
F.R.: Claro. Você quer fazer algo semelhante? Porque tenho certeza de que poderia.
S.K.: Acha mesmo?
F.R.: Posso escrevê-los para você, se quiser. Com uma condição.
S.K.: Qual?
F.R.: Que eu não receba até você filmá-los e que você me garanta que irá filmá-los.
(…)
F.R.: Quer que o filme [De Olhos Bem Fechados] seja parecido com os de Kieslowski?
S.K.: Não sei. Acho que precisamos levá-lo em consideração.
F.R.: Tem muito diálogo. Você quer muito diálogo?
S.K.: Não posso dizer o que quero. Quero a história de Arthur [Schnitzler], mas em Nova York, nos dias atuais. É só o que posso dizer. Gostaria de poder dizer mais, mas não posso.
O texto e os diálogos entre o diretor Stanley Kubrick e o roteirista Frederic Raphael estão no livro Kubrick, De Olhos Bem Abertos, escrito pelo segundo (Geração Editorial; pgs. 48-50). Raphael assina, com Kubrick, o roteiro de De Olhos Bem Fechados, o último filme do realizador de Laranja Mecânica, lançado quatro meses após sua morte. A maior parte das conversas contidas no livro – escrito em forma de diário e, em muitos pontos, como roteiro de cinema – ocorreu por telefone.
Ao reduzir a quinta parte do Decálogo a uma livre história de assassinato e violência, Raphael parece não levar em conta que Kieslowski estava mais interessado em emparelhar a morte praticada pelo assassino à praticada pelo Estado. Como em Laranja Mecânica, Kieslowski leva o público a pensar nas dominações do Estado (castrar ou executar) e suas relações com o homem de ação e liberdade ilimitadas.
Abaixo, imagens de Decálogo: cinco (também lançado em versão mais longa, Não Matarás), Laranja Mecânica e De Olhos Bem Fechados. O último foi baseado no livro Breve Romance de Sonho, de Arthur Schnitzler.
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