Do reino de Vito ao reino de Michael, o caminho é longo: há atentados, assassinatos, traições e outros crimes. Do início ao fim, nada consegue destruir a família. As estruturas são preservadas. Michael deve ser o novo Don Corleone, os irmãos que restaram seus súditos, o pai doente seu consigliere, as mulheres as coadjuvantes.
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O homem de poder vive às salas escuras rodeado por jogadas, negócios, cara a cara com os diferentes visitantes que lhe pedem favores. A máfia, em O Poderoso Chefão, é a família organizada, que não pode renunciar a esses atos nem no dia do casamento da única filha do Don – muito menos nesse dia de sol e reencontros.
Não estranha que se ensaie – e depois se concretize – a conhecida foto em família. Vito ao centro, núcleo duro que ainda une as linhas. Na primeira tentativa, ele percebe a ausência de Michael, pede que a foto seja adiada; à frente, com Michael na festa, retorna à posição central e pede que a foto seja feita – agora na presença de Kay Adams, a futura mulher do filho, personagem cujo peso é maior do que parece.
Vito nasce da sala escura, da fala de um certo Bonasera. “Eu acredito na América”, diz esse homem, encarando o poderoso chefe da família. Ele conta a história de como a filha foi seduzida e violada pela mesma América, como se deixou levar por um rapaz e terminou machucada – e como este, às barbas da Justiça, viu-se livre da cadeia.
O tal Bonasera pede justiça, quer que os homens de Corleone deem cabo do criminoso. O pagamento, prefere o mafioso, deve ser feito em nome da lealdade, não sem lembrar Bonasera de sua aparente indiferença àquela família que agora o acolhe. É como se dissesse: apenas a máfia pode atender ao pedido que a América não pode.
Aos olhos de Francis Ford Coppola, a partir da obra de Mario Puzo, constrói-se outra América, a das salas escuras, a da outra família, a dos imigrantes que ascenderam com um poder paralelo e, até certo ponto, ocultos entre o verdadeiro poder. Não estranha que digam, ao longo da obra, que Vito carrega alguns juízes e políticos no bolso.
O que Vito deseja de Bonasera é a lealdade à América que homens como ele – não sem banhos de sangue – ajudaram a construir, um pouco fora, um pouco dentro. Talvez a América paralela seja uma ilusão: só existe uma, a dos homens de poder, o que ecoa na frase de Michael ainda no início da segunda parte de O Poderoso Chefão, ao receber em sua sala escura, em outro dia de festa, um senador: “Vivemos na mesma hipocrisia”.
Vito, sob o olhar fechado e triste de Marlon Brando, explosivo e firme nas horas certas, assegura o poder da família, é menos político e direto se comparado ao jovem sucessor. Michael, vivido por Al Pacino, não mede esforços para manter os negócios da família de pé. É mais frio, sem rodeios, homem do novo mundo.
Há um momento espetacular – entre tantos – de Brando, quando se levanta rapidamente da mesa e esbofeteia o cantor que lhe pede mais um favor. O mesmo cantor diz estar perdendo a voz, o sucesso, e sucumbe – gesto ao qual Vito responde com fúria. Apenas Brando poderia se dobrar à aparente caricatura sem ser caricatura, mas, sobretudo, trágico.
Eis a grande mudança de Vito para Michael: passa-se da tragédia de um velho mundo à sóbria política de outro, da câmera que arrasta o público a um pensador consciente das dores dos outros à fala gélida do rapaz feito homem em suas decisões acertadas, com petulância típica a um assassino calculista, que dá as cartas sem pressa.
Aos líderes de outras famílias, após conflitos com sangue, Vito pede trégua, paz, fala do filho morto (Sonny, interpretado por James Caan) e aponta ao filho morto do outro mafioso; com as demais famílias, Michael terá sua forma própria de lidar, sem esquecer que foi o próprio pai que lhe apontou, de antemão, o homem que queria matá-lo.
Tudo o que há para saber sobre Vito, na primeira parte, reduz-se àqueles olhos tristes, um pouco cansados, de Brando. Sem paixão, apenas um velho homem de família intoxicado pelos negócios, que pergunta ao consiglieri (Tom Hagen, filho adotivo interpretado por Robert Duvall) quem é o próximo a entrar na sala.
Com Vito, O Poderoso Chefão inicia com um casamento e acertos entre homens em salas escuras; com Michael, termina em um batizado e um banho de sangue, o assassinato dos líderes das principais famílias concorrentes. Fecha com a consolidação do poder de Michael, filho que, a princípio, fardado, colocava-se fora do meio criminoso.
A personagem de Brando é, apesar de difícil, linear; a de Michael é mais complexa: exige do ator toda uma transformação, passagem do jovem à parte àquele que comandará a família, protagonista absoluto da parte seguinte, lançada dois anos depois. Michael não escolhe entrar no jogo; ele é simplesmente tragado à guerra que se desenha.
Antes, Michael é um militar, herói de guerra que, dizem os relatos, causa orgulho no pai aparentemente distante. O futuro líder revela-se apto a viver naquelas mesmas salas escuras, ao redor dos mesmos homens de face quadrada, ítalo-americanos que bebem até cair quando o assunto é festa, que matam pela necessidade de marcar território.
Michael entra na guerra de atentados e extorsões. Se aprendeu a matar não se sabe. Ali, entre fogo cruzado, aceita a missão de matar dois homens – entre eles um capitão da polícia (Sterling Hayden). Seu olhar projeta a força que destilaria pelo resto do filme: não fala nada, calcula, espera o momento certo para sacar a arma e atirar no crânio dos inimigos.
Torna-se líder através das mortes, antes mesmo de o pai nomeá-lo. Refugia-se na Sicília, apaixona-se, casa-se, em seu último gesto de inocência ou bondade, momento em que ainda é capaz de amar. A relação mostra sua disposição a aceitar o espaço duro e imutável das velhas tradições das famílias sicilianas de cidades rochosas e campos secos, das quais saiu justamente o pai, cuja história será contada na parte seguinte.
Michael torna-se um homem mau. Se antes matava pelo país, agora mata por algo maior: sua família ou, ainda mais, seu pai. Com ele, a família segue a mesma: núcleo criminoso fechado, machista, à penumbra, no qual a farda converte-se em terno, no qual a mulher, a começar pela nova esposa, deve permanecer do lado de fora da sala das negociatas.
Feita mulher do novo Don, Kay Adams é uma figura assexuada vivida por Diane Keaton. A escolha envolve mais segurança que amor. Se antes Michael não podia dizer “eu te amo”, tais palavras agora passam a compor mais uma de suas estratégias para perpetuar a família.
Na festa da abertura, acompanhado por Kay, o jovem Michael fala da própria família como célula distante. À sua maneira, ele ainda dá detalhes daquela organização criminosa, o que não fará mais tarde. O encerramento é exceção, quando Kay pergunta se o marido teve participação na morte do cunhado. Ele mente outra vez.
O Poderoso Chefão é sobre a transição do poder, o comando da família de uma mão para outra. Tudo precisa mudar para que tudo continue o mesmo, como na famosa frase de Lampedusa. E tudo e todos quase sempre retornam àquelas mesmas salas, ao mofo que consagra ao mesmo tempo a estética da simplicidade e o pendor ao épico.
Coppola entendeu que todas as grandes decisões – as que beiram vida e morte, que exigem cinismo absoluto – podem se dar no campo do gesto simples, e que todas essas frases pertencem a pessoas verdadeiras. A família – pai, mãe, filhos, netos – pede passagem. Nada mais próximo ao espectador. Nada a ver com gângsteres em covis ou becos sujos, com carros nos quais os homens penduram-se para atirar nos inimigos.
Ali, na casa, na festa de casamento, desenha-se a aproximação total: o velho homem poderoso com seu gatinho que escorrega entre dedos, os filhos diferentes que o cercam, as mulheres com seus bebês, de fala alta, do lado de fora, sobretudo na cozinha. No fundo, o espectador ama odiar tudo isso, a realidade fundada na escuridão.
A morte de Vito é o exemplo perfeito dessa simplicidade, o homem que tomba como outro qualquer. Por ali, o neto, em brincadeira, investe contra o avô que finge ser um monstro e não soa nada assustador. Após um mal súbito, o homem cai entre a pequena horta da família, aos olhos da criança. A inocência vai ao encontro da morte crua, outra vez sem rodeios.
Quando Michael anuncia o plano para matar os homens por trás do atentado do pai, ele é contido e direto – é a câmera que o contrapõe, que se move até ele, dando importância maior àquela escolha. Nasce desse movimento, antes dos assassinatos, o gesto do novo Don: alguém que quer vingança, é verdade, mas alguém que ainda olha para trás, para os irmãos, e diz que tudo não passa de negócios – a despeito do pai agonizante.
Coppola não queria fazer de O Poderoso Chefão um filme de autor. Era um filme sob encomenda para que pudesse fazer os filmes que queria – como A Conversação, à revelia da velha Hollywood. Fez outros grandes filmes mais tarde, nenhum deles à altura dessa primeira parte da saga da família mafiosa. Do roteiro ao elenco, tudo deu certo.
Sobretudo, um filme de homens. Para Vito, um dos visitantes da sala escura deseja netos homens. Pouco depois, um produtor de cinema (John Marley) mostra ao consiglieri Hagen seu belo cavalo de cor escura, o qual, afirma, será posto para reproduzir. Ao não aceitar escalar o cantor amigo da família para seu novo filme, o produtor acorda com a cabeça do cavalo entre as pernas, como se o sangue fosse seu. Vê-se castrado.
A continuidade da família – de preferência com filhos homens – é sagrada, como nas velhas dinastias. Para Michael, Kay representa essa continuidade, professora pacata para ter ao lado e, crê, alguém que não tentará se intrometer nos seus negócios. No instante final, Kay vê alguns homens beijando a mão do marido, assiste às “coisas” como elas funcionam, à expressão do reinado, antes de a porta ser fechada.
(The Godfather, Francis Ford Coppola, 1972)
Nota: ★★★★★⤴
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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