O dono da corretora de ações quer um animal forte para representar sua empresa e figurar na logomarca: o leão. Revista conceituada de Wall Street elege outro animal para representar o mesmo dono: o lobo. Ao fim das três horas de O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, outro bicho vem à mente do espectador: o abutre.
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Conclusão fácil: como a ave citada, homens como Jordan Belfort servem-se de carniça. Ao aterrissar em Wall Street, vê-se deslumbrado, traços de um garoto, o novato que assiste ao crescimento dos prédios, ao touro preto que toma a passagem, a homens de atitudes esquisitas, movidos à cocaína, que lhe servirão de modelo.
Belfort (Leonardo DiCaprio) não é novidade, diz Scorsese, com roteiro de Terence Winter, do livro do próprio corretor trambiqueiro e empresário: leões são raros, lobos existem em maior quantidade, abutres estão por aí aos milhares, ao alto, em busca do alimento podre.
Scorsese aposta no vale-tudo do mundo dos negócios de ações, em que tudo está à venda, a combinar com a orgia, o sexo, o dinheiro e as drogas em doses cavalares. Tudo à mão, sem perder o senso de humor. A vida de Belfort é um parque de diversões.
O filme será assim, feito ao exagero. Reside aí seu maior interesse: o abutre, quem diria, parece indestrutível, e sua vida permite a comédia. Os saltos – de milhão em milhão, começando pela empresinha que fazia parede com um lava-rápido – dão vez a um andar inteiro no seio dos negócios de seu país. As práticas, contudo, são as mesmas.
Primeiro, a lábia. Basta ser um pouco esperto, um pouco de treino. Como se qualquer um conseguisse vender muito – ainda que nem todos tenham conseguido acumular tanto como Belfort, dono de uma casa invejável, um iate com heliporto. São seus “brinquedos”, formas para Scorsese explorar a criança que quer apenas brincar.
O poder, no fundo, resume-se à diversão, viver para fazer o que quiser. Usar quantas drogas quiser, transar com quantas mulheres aguentar, servir-se de festas de fim de expediente – ou, em certos casos, brincalhão como são esses yuppies, levar a festa ao trabalho.
Para completar, o brincalhão Belfort – que aprendeu cantar à mesa de um restaurante chique, batendo no peito, a imitar um ritual tribal – casa-se com a mulher mais linda da quadra, do bairro ou da cidade (Margot Robbie). Mulher mais linda não haveria para levar para casa, batizar seu iate, dar-lhe alguns filhos – sem que deixasse de se divertir.
Scorsese, como o homem em foco, permite-se brincar. Faz um de seus filmes mais livres e interessantes; não se impõe limites, nem para situações nem para piadas, nem mesmo para o sexo ou o consumo de drogas. O exagero é parte fundamental das engrenagens do sistema guiado por jovens treinados para vender ações fajutas e especulação.
A comédia torna a história mais plausível: as tantas loucuras de Belfort soariam inverossímeis se este fosse um “filme sério”, no sentido dramático. A obra constitui-se da farsa, da personagem que encara a câmera para dizer verdades, que faz do público – que se vê rindo, veja só – cúmplice de suas piruetas e manias condenáveis.
No caso de Belfort, só dinheiro não basta. É preciso um pouco de espetáculo, segurar o microfone e, na forma comum àqueles que gostam de lavagens cerebrais, como pastores, bradar as vantagens de ser rico. O lado racional do espectador certamente condenará alguém como tal, cercado sempre por garotas belas, divertimento, bolos de dinheiro.
O homem de Scorsese – tão incorreto – é o desejo secreto, o id adormecido de uma nação em que a selva converteu-se em rochas espelhadas, simétricas, altas, em corredores intermináveis de mesas, telefones e barulho, com todos à espera do alarme do fim da jornada, para então comemorarem – com mais festa, sexo e drogas.
(The Wolf of Wall Street, Martin Scorsese, 2013)
Nota: ★★★★☆
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