O Funeral das Rosas, de Toshio Matsumoto

Os travestis provocam os passantes. A câmera flagra a realidade ao fundo, sem cálculo, sem interpretação: os rostos dos outros, surpresos, e a vida que não se controla. A experiência fica entre o registro e a representação, uma determinada época (fim dos anos 1960) em um determinado lugar (o Japão), uma história de amor e morte.

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A proposta de Toshio Matsumoto para seu O Funeral das Rosas é quase sempre radical, ao mesmo tempo – e surpreendentemente – leve. O descompromisso da câmera revelada, do filme em produção, não retira o peso de sequências cômicas ou dramáticas, e amplia a exploração da linguagem cinematográfica.

É a história de uma jovem travesti e seus companheiros, amantes e desafetos, pessoas com as quais cruza pelas ruas de um Japão transformado, seco, real, em que cada pequena porta leva a um descobrimento. À frente, o realismo gritante não impede que se invista, à maneira de um Godard, nas adulterações da imagem, no avanço à violência que, não demora, dá espaço à brincadeira.

A protagonista é ela própria. Em uma das investidas no aspecto documental (sem esquecer a claquete), ela confessa que a história, que envolve incesto, não é a sua história. Com Eddie (Pîtâ), Matsumoto expõe um corpo delicado, um rapaz feito mulher, pequeno, frágil.

Seu passado corta a tela. Um filme dentro do filme também: surgem, subitamente, imagens distorcidas, montagem rápida, jogo incompreensível que, explica um dos realizadores, com as barbas falsas de um revolucionário cubano, é para sentir, consumir como se consome uma droga. Cinema underground, pura experimentação.

Eddie divide-se entre as relações com esse grupo de artistas (revelando Pîtâ) e como a amante do dono de uma casa noturna. Pela noite, desfila usando perucas diferentes, jeito de menina, adolescente, fetiche para alguns – para a inveja da travesti Leda (Osamu Ogasawara). Ambas disputam o mesmo homem, justamente o proprietário do local.

O destino guarda um caminho impensável à protagonista. A dor custa sua visão, a amputação do sentido que nutre o cinema, que não se dissocia desse universo feito à imagem, à ostentação, ao desejo que se consome pela retina: um mundo de pessoas levadas pelas necessidades do corpo, de liberdade, do caminhar impossível sobre linha reta.

A morte do olhar é anunciada com antecedência: ao queimar o rosto do pai na foto de família, Eddie apresenta o círculo corroído, cinzas escancaradas, como se a película queimasse. Sensação de que a obra encontra, de dentro para fora, a própria destruição.

Um filme sobre o cinema e, por isso, que obriga a ver mais, a observar com cuidado o que guarda (ou esconde) esse novo Japão – para além de qualquer “esquisitice”. É a linguagem que radicaliza, em pontas soltas que apenas mais tarde encontram conexões e, sobretudo, nos bastidores do mesmo filme, nas confissões de quem vive aquela história.

Algumas pessoas de passagem também são convidadas a falar. “O que quer fazer no futuro?”, pergunta o cineasta a uma travesti. “Nada”, responde. “Não tem sonhos?” “Eu sou o que sou.” Personagem ou pessoa real? O filme não responde. “O espírito de um indivíduo alcança seu máximo absoluto através de uma constante negociação”, diz a frase final.

Para Matsumoto, importante subverter as regras, sair pela porta do fundos, chegar a uma “história” enquanto corre a filmagem. Filmes assim são raros: na tela, os vários recortes e colagens são organizados. O que podia soar bagunçado tem sentido.

(Bara no sôretsu, Toshio Matsumoto, 1969)

Nota: ★★★★☆

Veja também:
A Mulher Inseto, de Shohei Imamura

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