Nascida e criada para não chamar a atenção, a menina de cabelo armado, vermelho, termina gerando efeito oposto: nasceu para a câmera, que dela não se desprega. Criança à parte, aos cantos, que tenta se juntar aos outros em Um Anjo em Minha Mesa, e que seguirá assim no decorrer de toda a história, a da poetisa Janet Frame (Kerry Fox).
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Para dar conta dessa figura complexa e ao mesmo tempo atraente, a diretora Jane Campion prefere – ao contrário do que fez em seu filme anterior, o ótimo Sweetie – o aspecto simples, a vida que corre entre tropeços, pouca confusão e pouco grito. Os recortes oferecidos desembocam em algo livre, assimétrico, por isso mesmo cativante.
Não se espera nada da menina que nada promete, ou da mulher que, saca o espectador atento, seguirá como sempre foi do início ao fim. Campion respeita essa integridade: sua heroína é, ao mesmo tempo, profunda e fácil de compreender, talvez porque, do roteiro de Laura Jones, não se pretenda dar luz a um ser idealizado, destacado da multidão.
O que destaca Janet dos outros é, primeiro, a forma: a menina gordinha de cabelos vermelhos, vítima perfeita das garotas de sua idade, a deslocada que, para se ver inserida, compra balas e distribui aos colegas de sala – gesto que lhe custa o castigo dado pela professora, o de olhar para o quadro negro. À frente, quando ela própria torna-se educadora, será perseguida pelo olhar autoritário de um dirigente da escola.
Janet não suporta a perseguição. Na sua busca pela fuga, aceita mudar de trabalho, de professora à garçonete, sem nunca deixar escapar as letras, os versos. A poesia entra naturalmente: entre um teste e outro, entre as palavras de um professor, entre o presente do pai, o caderno, no qual deverá se debruçar para colher as próprias palavras.
Aqui, Janet é poetisa a despeito de todo o resto, e o que importa é sua relação com os outros. O filme não existe para sua poesia, ou para sua figura poetisa: mais ainda, existe para ela, para que possamos perceber que uma cinebiografia sobre gente comum pode conter igualmente o ser extraordinário, ao passo que não se separam.
A protagonista é uma mulher em busca de descobrir o que a cerca. A poesia, que pouco se vê na tela, será consequência. Presa à família, depois ao hospital psiquiátrico, a moça (ou a mulher) descobre a saída. A poesia dá-lhe o pontapé. Ela aceita. Navega para a Inglaterra, depois para a Espanha, locais inimagináveis. Faz amigos e um amor.
Em sua maturidade, vê o tamanho do mundo, do mar, e por este nadará nua em sua descoberta do corpo. Desvirgina-se nesse ponto o ser até então fechado, a mulher trancada à forma física que, dirão os ditadores da beleza, não causa atração: um pouco quadrada, branca, com carne a mais, sorriso desajeitado, candidata óbvia à estranha da turma.
Em um filme sobre descobertas, a volta para a casa, às botas do pai ou às amarras da família conservadora, nunca será um problema. Ao contrário, Janet parece mais tranquila ou feliz quando está em casa. A parte dura do filme é reservada aos anos de hospital psiquiátrico, após um equivocado diagnóstico de esquizofrenia e sessões de eletrochoque.
Aos bárbaros de branco, a moça entre loucos não será destacada, não parecerá outra. Pessoa errada para aquele ambiente, criança acuada, um pouco como seguirá em boa parte da história. Medo e desconfiança, por sinal, são traços comuns à protagonista. Ao receber as carícias do novo amante, depois de um dia para falar de poetas, livros e versos, sentirá outra vez vontade de ir embora, dificuldade de se entregar ao sexo.
A mulher que surge dessa experiência física é diferente. O verão de Janet é de libertação. Ao nadar nua ou beijar seu amante com seios à mostra, rodeada pela água, revela o quanto é possível mudar e se descobrir. Barreiras caem de repente. Nem por isso perderá algumas de suas características – entre elas, a aparência de sonhar o tempo todo.
(An Angel at My Table, Jane Campion, 1990)
Nota: ★★★★☆
Veja também:
A Mulher do Tenente Francês, de Karel Reisz