Os dois filmes abordam as engrenagens da polícia, do poder, em suas salas de interrogatório, as dos homens com o direito de acusar, humilhar, até agredir – direito que não será contestado por outros seres de dentro. Ambos lançam o espectador à dúvida: primeiro, se o homem é ou não o autor de um assassinato; depois, se outro assassinato será descoberto.
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O primeiro homem do primeiro filme de Elio Petri, O Assassino, é Marcello Mastroianni. Em seguida, quase dez anos depois, com Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, o mesmo Petri oferece Gian Maria Volontè. Em filmes que mais se refletem do que se refratam, faz um estudo brilhante sobre o poder.
Para Mastroianni, em tipo mulherengo e confuso, Alfredo Martelli, concede o benefício da dúvida: pelas engrenagens do sistema, pela investigação, o espectador não sabe ao certo quem é esse homem, se aquelas poucas horas serão capazes de entregá-lo, e se o inspetor de polícia – mais velho, desconfiado da nova juventude – poderá agarrá-lo.
No caso de Volontè, o passo é outro, ainda mais arriscado: chega-se ao monstro social, ao cidadão “acima de qualquer suspeita” porque agarrado ao poder, ele próprio o inspetor de polícia. Primeiro, a vítima, ou o alvo; depois, o criminoso de terno e gravata, escondido em seu próprio cargo, em seu título, no “direito” que a função concede-lhe: alguém que deverá testar, a seu gosto, o sistema que lhe sustenta, seus limites, sua cegueira.
O Alfredo de O Assassino é acusado de matar a amante, Adalgisa (Micheline Presle). Rapaz de fala calma, sob suspeita constante, é dono de um antiquário, veio do campo à cidade para prosperar como pode, ou como pôde, em suas possibilidades: é o aventureiro e filho do pós-guerra, indiferente, até algum ponto, à política e ao mundo ao redor.
Mastroianni é perfeito para alguém assim: pode ser o assassino, o inocente, o cafajeste que, nas linhas finais, intitula-se matador, enquanto sorri. O título serve-lhe. Os tempos são outros. Inocente ou não, não importa: Petri prefere – como preferirá em Investigação – os meios, não os fins. Invade as mesmas salas escuras, frias, com pilhas de papéis, as mesmas vozes, os rostos dos suspeitos de sempre.
O poder, em ambos os filmes, será posto em dúvida: nos dois casos, em suas cegueiras, em seus tiros no escuro, a busca tacanha pelos estereótipos que tão bem servem – e que tantas outras vezes foram parar na tela do cinema – o paredão de reconhecimento. Nos dois casos, cada um à sua forma, os filmes devolvem o sorriso amargo do realizador: é da política, outra vez, que se fala, e esta, diz Petri, está em todos os lugares.
Ao escarafunchar a vida do suspeito, o inspetor de O Assassino busca suas raízes políticas, como o avô anarquista que assistia à marcha dos fascistas enquanto pescava, na época da guerra. Será insuficiente, como também será o depoimento de outros, em tom documental, cada um dando sua opinião sobre Alfredo, quebra-cabeça viciado.
Não é possível ver esses homens, nunca será: o pobre bêbado que caminhava pela rodovia – na mesma noite em que Adalgisa teve seu salto quebrado – queria apenas se suicidar. “Apenas”, ao que parece, por ser alguém cansado, inalcançável aos olhos de todos – como os de Alfredo. O suicídio do desconhecido ajuda a entender o filme.
Para o todo-poderoso inspetor de Volontè, o golpe é outro, o espelho inverte-se: é possível ver tudo e perder algo, deixar escapar por algum golpe de visão. A própria película, momento ou outro, escapa, veloz, como se a obra fosse baseada mais no registro do que na verdade, e como se esse brilhante estudo sobre o poder pudesse também ser um documentário sobre a intimidade de um chefe de polícia impotente.
Seus problemas também são – ou apenas são – sexuais. A bela que ele mata, interpretada pela beldade Florinda Bolkan, descobre que o imponente converte-se em criança durante o ato sexual. Com ele, brinca de montar cenas de crimes, deixa que o mesmo a fotografe. O fetiche pela morte dá espaço ao fetiche pelo poder: o homem que brinca passa a matar porque não suporta ser visto como criança pela amante.
A crítica de Petri é perfeita: o fascista não se suporta minúsculo, busca a grandeza em títulos, fardas ou insígnias, precisa matar para dar vez ao gozo. O poder é colocado em dúvida, sempre, ao passo que o homem “acima de qualquer suspeita” testa os limites de seu meio, enquanto os outros não enxergam – ou não querem enxergar – seu crime.
Ele provoca, deixa pistas. Nada acontece senão medo ou incredulidade nos que ainda se esforçam, ou se colocam a pensar. O risco compõe seu fetichismo: talvez tudo não passe de uma caminhada para ser agarrado, para dar vez a seu desejo reprimido, o de ser preso, ainda que o contexto kafkiano impeça-o. Petri recorre ao autor de O Processo no encerramento de Investigação: “Não importa a impressão que nos dê, ele é um servidor da lei, portanto pertence à lei e escapa ao juízo humano”.
Segundo Jean Gili, historiador do cinema italiano, a personagem de Volontè é herdeira da personagem de Mastroianni. “Há uma ponta de sadismo no Mastroianni de O Assassino”, argumenta ele, para quem o lado esquizofrênico do rapaz, “menos presente”, será amplificado no malvado protagonista de Investigação – do investigado ao investigador.
Em O Assassino, com fotografia de Carlo Di Palma, a câmera desliza, elegante, segue sem pressa. Fica a impressão de que não se sai do mesmo lugar. A proposta de Investigação é outra: a câmera é brusca, corre, choca-se com várias faces pelo caminho. Nos dois, ficam corredores e celas frias, acusação, dúvida, labirinto insuportável.
(L’assassino, Elio Petri, 1961)
(Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto, Elio Petri, 1970)
Notas:
O Assassino: ★★★★☆
Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita: ★★★★★
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Um comentário sobre “Cidadãos sob suspeita (em dois filmes de Elio Petri)”