Por trás de muralhas e armaduras, a fragilidade do poder pode ser vista em detalhes, na rápida e aparente simples troca de expressão, ou força de interpretação. No rosto, em suma, sob a maquiagem imposta ao ator central, Tatsuya Nakadai. Quando bem entende, pode ser rei: insufla o peito, faz cara de bravo; ao sorrir, volta ao bandido.

A condição miserável não o abandona nunca. Para um reino feito de aparências, para além de exércitos e rituais, é preciso uma réplica, o duplo, alguém que não deixe ver outra coisa senão o lorde. Segue ao ritual, por isso, o impostor, o mesmo que pode alterar a face, que já foi outro e, no fundo, não poderá deixar de sê-lo.
O que explica sua pequenez ao assistir à batalha final – ou ao massacre – em Kagemusha, a Sombra de um Samurai. Desfeita a maquiagem de rei, posto para correr não sem antes ser escorraçado pelo baixo clero de boçais, terá de assistir à morte de seus homens em seu figurino verdadeiro, alguém pequeno, senhor comum.
Nas primeiras imagens, o espectador só saberá quem é o verdadeiro lorde devido à disposição das personagens no quadro. Ao centro, um pouco acima, Shingen Takeda (Nakadai) vê seu duplo pela primeira vez. Quietos, como estátuas e, de propósito, colocados a alguma distância da câmera por Akira Kurosawa, serão exatamente o mesmo, ou quase.
Vêm o sorriso, o jeito mundano, malandro: é quando o filme realiza-se pela primeira vez, estranhamente – apesar da pequenez de seus seres naqueles grandes cenários de pedra ou madeira. Bastam o sorriso, a ideia de diversão, o destino estranho ao então vagabundo. É quando Kurosawa acena ao protagonista, contra estruturas luxuosas.
O lorde quer viver três anos após sua própria morte. Ordem dada aos súditos, cabeças do poder, fiéis enfileirados ao seu lado a cada reunião para decidir os rumos do reino. Para tanto, esses homens de confiança terão de recorrer ao estranho vestido como senhor da guerra, do qual ninguém – ou quase ninguém – deverá desconfiar.
O poder é mantido pela imagem. Baseia-se, há séculos, em estranha propaganda (nem sempre) velada, em aparência, igualmente em interpretação. Basta que a réplica corra à frente dos soldados para que estes encontrem força, mais que um boneco ou um cadáver. Seu dilema consiste em ser o morto, justamente o espírito que o persegue em sonho.
O delírio vem seguido pelo aspecto impressionista, pelo fundo forjado à pintura, linhas de um Van Gogh. A câmera move todo o universo, de um lado para o outro, à medida que o homem – outra vez tomado pelas dores, ao se sentir engolido por toda aquela vastidão plástica – fica no mesmo ponto, ao centro, perto da água.
Resolverá parcialmente seu problema ao ir para a guerra, ao se sentir rei, não mera marionete: dedica-se tanto à imagem projetada que acaba se confundindo com a mesma. Assume o posto de “montanha”, apelido dado a Shingen pelos seus homens, o da força da natureza que não se move, para apenas observar e guiar seus súditos.
Kurosawa chega ao melhor momento do filme com essa sequência de batalha. Ao espectador, valerá o olhar do lorde, sua posição, atenção ao confronto que não se vê – não mais que cavalos de um lado para outro, de tiros que atingem alguns soldados. A guerra é interna à personagem, produto de um estúdio, feita das explosões de luzes vermelhas ao fundo, do inferno em teatralização aberta para a câmera do cinema.
Ponto em que o bandido realiza-se como rei, ainda que por pouco tempo: não terá medo de erguer a voz e pedir que os soldados fiquem no mesmo lugar. À saída do castelo – e do papel que lhe foi dado -, precisa retornar à personagem anterior. O reino, a guerra e o sangue outra vez correrão à frente de seus olhos. Assistirá à batalha de outro ângulo, como qualquer um, vítima, não mais como “montanha”.
(Kagemusha, Akira Kurosawa, 1980)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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Um Domingo Maravilhoso, de Akira Kurosawa
