As Melhores Intenções, de Bille August

É a família, primeiro, que representa o problema. Passado esse obstáculo – com o casamento e a ida para outra cidade, ou pequeno povoado – vem o seguinte: a sociedade. Entre esses grupos, cada um deles com sua organização, a vida é mais difícil, às vezes irrespirável, o que leva as personagens centrais a se ajoelharem a Deus, ou escaparem.

Tem-se assim o resumo. Há mais em As Melhores Intenções. Apesar de todos os obstáculos que permeiam a caminhada do casal, Anna (Pernilla August) e Henrik (Samuel Fröler), o título não engana: toda a história, do roteiro de Ingmar Bergman sobre seus pais, não é enganosa. Longe disso: sobrevivem as melhores intenções.

São, como se vê, insuficientes – tais como os sentimentos verdadeiros, a consciência de que homem e mulher devem permanecer unidos, contra as tempestades. Seguem em embates nem sempre fáceis de explicar, vítimas de pequenas coisas que, nessa organização social, forjam-se grandes. Em momento específico, brigam por causa do local do casamento. Ela quer uma igreja grande, luxuosa; ele prefere o pequeno espaço.

O casal dá vida a uma nova família, com filho, dono de uma casa fincada em reino gelado à beira de um rio. O filme de Bille August banha-se tanto em branco que outras cores surtem estranheza, um aviso, como se fosse possível – como foi em Fanny e Alexander, de Bergman – converter-se à comédia por algum período, à felicidade estranha, ao requinte da casa da sogra durante o natal, dona de novas tonalidades.

Anna apaixona-se por Henrik em poucos olhares. Ele é convidado a almoçar em sua casa, é amigo de seu irmão. Ao ir embora de bicicleta, fita a janela, ao alto, enquanto a câmera acompanha seu deslocamento, olhar fixo. Não é preciso revelar o que vê. Os sentimentos são verdadeiros, ainda que contidos, nada a ver com Bergman.

Ainda assim, comparar o trabalho de August a qualquer outro de Bergman, levando em conta os feitos do último, um mestre, é bobagem. Este é um filme de August com texto de Bergman: é Bergman pelo olhar de outro, e por isso mesmo não se pode esperar, como alguns esperaram, a profundidade dramática do realizador de Gritos e Sussurros.

O próprio deslocamento à sociedade – o que, é verdade, Bergman também fez, mas não em seus trabalhos mais famosos – dá a tônica da diferença. Melhor ficar com August. Na verdade, é necessário: o realizador do belo Pelle, o Conquistador tem a seu favor a sensibilidade, justamente a distância, a dificuldade de penetração.

Seu filme permite encontrar um meio, o espaço entre pessoas, preenchimento que soa possível – e como! – nas sequências em que os amantes são vistos entre a paisagem, com bicicletas por bosques, na cabana para o primeiro contato sexual, sozinhos na igreja vazia.

Para August, ao contrário de Bergman, a distância faz sentido. É parte da mise-en-scène, o que o leva a pagar um preço alto: se por um lado sobram beleza, discrição e elegância, por outro se sente um vazio angustiante. Alguma agressão física, como um tapa, será abrupta; uma expressão facial não chega ao fundo da personagem.

Eis o problema: August prefere a composição elegante, o tempo certo, nunca a exaustão do verbo e, por consequência, a dor da alma. O resultado não é menor, tampouco satisfaz por completo. A impressão é que há paredes de sobra entre pessoas, que o frio que as recobre também exerce função dramática: separa-as.

Em Lanterna Mágica, seu livro de memórias, Bergman descreve o cheiro de sua mãe: “um cheiro doce de baunilha; quando se zanga seu buço se umedece e ela exala um quase imperceptível odor de metal”. Com Pernilla August, fica a baunilha, nunca o metal. Contudo, não se pode culpar a atriz. Quem carrega o perfume de baunilha na conta é o cineasta.

(Den goda viljan, Bille August, 1992)

Nota: ★★★☆☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
A Fonte da Donzela, de Ingmar Bergman

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