Os golpes e o sangue não duram muito. A certa altura nem tudo será mostrado, e não é simples delimitar esse ponto de mudança. Em Minha Vingança, o diretor Shohei Imamura aproxima-se de uma crônica sobre a violência no Japão, o que o permite atropelar os afoitos pelo típico filme policial ou de assassino em série.
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Seu criminoso – matador de homens e mulheres, golpista, camaleão, sexualmente potente – não se deixa ver facilmente e, por muitos momentos, tempo demais, a narrativa escapará dele para que se encampe a tal crônica japonesa, a vida crua, como ela é, a partir da obra de Ryûzô Saki – o que faz o cineasta esbarrar até no cômico.
Seu assassino não está exatamente em busca de uma vingança, como sugere o título. Ou, se é possível seguir essa linha, tudo não passa de revolta contra a sociedade que o fez perder, ser outro, a mesma que o obrigou a se erguer contra o pai, na infância, ao vê-lo ser esbofeteado por um soldado da guarda imperial, dando a face ao tapa.
O pai fala de Deus, é religioso, dono de características às quais o filho dá de ombros. O pai culpa-se por gerar o rapaz, mais tarde preso e no corredor da morte. Diz ao filho que carrega nas veias o sangue do demônio e, como o rebento, ele próprio foi excomungado pela Igreja. O filho pouco liga, o pai sofre. Nem a fé consegue conectá-los.
Ao filho, primeiro: Iwao Enokizu (Ken Ogata) cresceu sem maturidade, fez o que quis fazer, não se impôs rédea. Fala o que vem à mente, não mede esforços para praticar o mal, ri dos problemas e da estrutura familiar – à medida que os outros sofrem. Tornar-se assassino é o passo seguinte para praticar seus crimes e ganhar dinheiro.
O início indica seu destino: está no banco traseiro da viatura policial, em comboio, pela estrada à neve, à noite. Será levado a interrogatório, depois à cadeia. Personagem complexa porque aparentemente vazia, sem sinais de consciência, Iwao não faz de si um enigma. Fica à tela, ainda assim, alguém inalcançável, não simplesmente vazio ou sem causa.
Imamura faz um filme sobre violência sem se banhar em sangue, perfeito ao trabalhar com a expectativa, com a espera insuportável – seja pela frustração do criminoso ao tentar matar e não conseguir, seja pela inevitável espera da morte. Sua filmografia conduz a esse ponto, empurra aos sinais da inconsequência jovem de Todos Porcos, às leis da selva, à sobrevivência a qualquer custo no Japão pós-guerra de A Mulher Inseto.
Há personagens conhecidas, como a dona da pensão em que o assassino se hospeda e a mãe dela, senhora que se revela assassina e provoca o protagonista. A primeira – a certa altura amante de Iwao – entrega-se a um homem mais velho para que continue em seu trabalho, a segunda assiste aos atos e ao sexo entre clientes.
O assassino é a resposta de Imamura a uma nação escondida sob os sinais da tradição, país que não libera seus sinais íntimos, prisão imposta a esses seres por eles próprios. O assassino libera suas pulsões, faz e diz o que deseja, o que provavelmente explica a atração gerada nas mulheres que cruzam seu caminho – a começar pela dona da pensão.
Ao pai, depois: em contraponto, será a personagem que tenta demonstrar ao filho a consciência, a importância da família, da obediência, a começar pelos golpes aceitos, naquela volta à infância do protagonista, do guarda imperial. O pai, vivido por Rentarô Mikuni, fracassa ao tentar sinalizar a possibilidade de ordem.
Ordem que não vem – a começar pelas pequenas coisas, como a porta do guarda-roupa que insiste em se manter aberta, pela qual se vê um cadáver. O filme aposta na estranheza, ainda que possível e até verdadeira. Jornada disforme de um homem esquisito, repugnante, chegado a disfarces, entre o caos que aceita e, livre como é, reforça.
(Fukushû suru wa ware ni ari, Shohei Imamura, 1979)
Nota: ★★★★★
Veja também:
O Submundo, de Jean Renoir