Situações, personagens e ambientes comuns ao faroeste estão todos ali, às claras. Na superfície, os irmãos Ethan e Joel Coen trabalham com os clichês, e aos poucos introduzem entre os mesmos suas novidades, pequenas situações ou detalhes que distinguem A Balada de Buster Scruggs de outros tantos exemplares do gênero.
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O tom obscuro, acentuado pela bela fotografia de Bruno Delbonnel, casa-se à graça, ou à mutação da graça em absurdo, de tiros que não doem, sangue que nem sempre soa repulsivo – como se vê nas comédias que, à moda recente, apelam a efeitos gráficos. Talvez os Coen estejam a sorrir desses efeitos, da tradição de Leone à atualidade.
Filme episódico que, a cada investida na ação ou na palavra, ou mesmo na música, transporta o público a diferentes universos: inicia com a história de um tal Buster Scruggs, “abelhudo” do Texas, que atira para não errar e, quando morto, troca as armas pelas asas e canta aos céus, sobre seu matador que caminha, típico diabo de roupa preta impecável.
Termina com a que pode ser a melhor história, a que dispensa o som das balas, a ação, e se apega ao texto afiado. Os Coen são bons nos dois campos. Diferente de Tarantino, que também tem apostado na faroeste, ou preferem mais o verbo ou mais a bala, nem sempre – como Tarantino – utilizando o primeiro como saturação, a dar vez à segunda.
Os diálogos são perfeitamente pontuados. O capítulo final, o da diligência, expõe em seu interior todo um mundo de personagens e caricaturas do velho oeste, o que talvez ajude a entender o fascínio pelo gênero. São essas misturas – e alguém certamente recorrerá ao clássico dos clássicos, No Tempo das Diligências – que ajudam a explicá-lo.
A cada capítulo um velho lugar revisitado, algum personagem já visto, os ambientes manjados. Tudo velho e novo ao mesmo tempo, ao brilho que se forja às sombras, comum a Delbonnel, como se no capítulo final, à beira de um filme de horror, fosse possível visitar Tim Burton ou alguma obra pop do cinema fantástico, com bruxos e lendas.
Será visto, de história em história, um pouco do que faz o faroeste algo único: o duelo olho no olho, o enforcamento em uma árvore qualquer e depois ao público curioso, a saga do artista itinerante, a busca pelo ouro, a viagem na caravana e o encontro de diferentes na diligência. Em algum momento as personagens cantam, e as situações resolvem-se.
Como outras vezes, os Coen revisitam os signos do cinema clássico para, sem fraturá-los, subvertê-los. O mesmo se deu com O Homem que Não Estava Lá, retorno ao cinema noir. Reverência que não deixa escapar a assinatura dos talentosos irmãos.
A história de um certo local ou uma certa nação; doses de pólvora, religiosidade, sujeira. Nada a esconder. No fim, quando as personagens da diligência veem-se sozinhas em frente à hospedaria, obrigadas a se abrigar com caçadores de recompensa e um cadáver, a ironia vai ao máximo: são condenadas a continuar sob o mesmo teto.
Começa com o Buster Scruggs de Tim Blake Nelson, verdadeiro idiota que se revela rápido com a arma, a quem matar é fácil; termina com a expressão amedrontada do francês interpretado por Saul Rubinek, que, aos colegas de viagem, afirmava retirar alguma filosofia de vida do jogo de cartas. A vida como jogo, cheia de incertezas, como a diligência de um filme de terror, cujo guia misterioso não deixa ver a face.
(The Ballad of Buster Scruggs, Ethan Coen, Joel Coen, 2018)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
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