Os negócios prosperam enquanto pai e filha vivem lado a lado. Depois da morte da mãe, a moça não acredita que os espaços ao redor – o quarto da falecida, a fazenda, sobretudo o coração do patriarca – possam ser ocupados por outra mulher. Mas o inesperado ocorre: o velho tem nova companhia. A filha, em segundo plano, enfurece.
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A história da mulher que ama o pai, em luta para ocupar o lugar da mãe, é a melhor forma de resumir Almas em Fúria, de Anthony Mann. Os negócios da fazenda são importantes, ajudam a mover a história. Por outro lado, o pai desregrado, torto e espalhafatoso não se atentou à questão central: o amor da filha é igualmente destrutivo.
Por ele, ela estará disposta a tomar tudo. Só por ele. Nesse sentido, os negócios são uma desculpa, impalpáveis como as cédulas feitas para aquela fazenda – sob o carimbo do próprio homem, o pai, a moeda para servir ao pagamento dos mexicanos pobres e explorados, forma de poder paralelo. O dinheiro, ali, não vale nada.
A moça em questão, protagonista absoluta, é Vance Jeffords. Ninguém melhor para vivê-la: Barbara Stanwyck. A certa altura, pede um tapa, depois um beijo. Pede ao homem que talvez ame em menor medida, usado – como outro, um mexicano com quem cresceu – para tentar apagar da vista o soberano, o pai falastrão de Walter Huston.
Uma das delícias do filme é tentar compreender como uma mulher tão forte pode amar tal homem. A explicação reduz-se ao laço de sangue, à posição que cada um ocupa, à medida que resta à filha, ao olhar aparentemente indiferente do pai, o vestido da mãe morta, para com ele postar-se ao alto da escadaria, em seu pequeno palácio de tijolinhos.
Outra estranheza: esse reino feito ao (e pelo) pai, à sombra de uma estátua de Napoleão estrategicamente ao lado da mesa do escritório, é tão frágil quanto a moeda confeccionada para circular ali. Nada resiste muito. Do lado de fora, Mann insiste na aparência pobre, na falta de luz, no chão de terra que consome a paisagem.
Do lado de dentro, a profundidade de campo possibilita a profusão de camadas, entre cômodos, como no momento em que a filha – para atacar o pai sem o uso das palavras, mas com jeito atraente – convida para a dança justamente um velho inimigo da família, homem de outra estirpe, chegado a jogos de roleta e lucros bancários.
O pai até ensaia um gesto de ódio ao assistir ao encontro. Logo se recolhe, prefere deixar a filha ir embora, na charrete, com o indesejado. Por curioso que pareça, ela deixar-se-á levar pelo invasor, pelo outro, nesse filme extraordinário em que ninguém se revela herói ou vilão. Tudo gravita em torno das relações entre terra, sangue e negócios.
No momento mais forte, Vance lança a tesoura no olho da nova companheira do pai, interpretada por Judith Anderson. Em seguida, desce as escadas para ir embora, em movimento triunfal: é quando Mann expõe o amor por caminho estranho, em comunhão com o todo, na filha que precisa tirar do caminho quem lhe tirou o pai.
Vai embora, esconde-se entre os mexicanos. O patriarca corre atrás. Depois de muita luta, alguns tiros e pedras lançadas montanha abaixo, o pai manda enforcar um dos invasores de terra, justamente o melhor amigo – também amante – da protagonista. Resta a ela outra tentativa para se vingar do velho homem: comprar sua fazenda e assim possuí-lo.
À época, os faroestes ainda eram dominados por machos em velhos espaços de terra seca, entre pedras, para compor o impensável: as relações de amor entre pessoas isoladas, criadas para ter medo do outro, para se manter no limite das cercas que as recobrem. As filhas amam os pais, os filhos as mães, as irmãs os irmãos. A violência é o passo seguinte, inevitável.
(The Furies, Anthony Mann, 1950)
Nota: ★★★★☆
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