El Cid, de Anthony Mann

Na ausência do homem, quando vale tudo para ganhar a guerra e instituir a liberdade em um país, apresenta-se o defunto. Ainda assim, não será homem ou cadáver: o herói de Anthony Mann em El Cid, personagem-título, é divino, está muito além da carne. Institui-se o falso, livremente, sob a forma máscula de Charlton Heston.

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Não deixa de ser curioso – ou engraçado – que esse homem santificado, equiparado a Deus, com seguidores fiéis, seja reduzido a nada: um pedaço de carne, ou um corpo embalsamado, preso a ferro, sobre o cavalo branco. Colocado na guerra apenas para contribuir com sua presença, ou imagem, e assim garantir o pavor do inimigo.

Heston tenta repetir Ben-Hur. Foi importado para tal fim: vê-lo como El Cid Rodrigo de Vivar é retornar ao herói às bordas da religiosidade do épico premiado de William Wyler. Se no anterior estava à sombra de Cristo, ainda que protagonista, no seguinte será peso único, eleito para cavalgar como o escolhido, a dar água ao leproso.

A religiosidade nunca é um problema no filme de Wyler. No de Mann é um passo em falso, opção que arrasta o herói à esfera do impossível, distante, da lenda que se força, para então o homem escorregar pelas mãos. Ao colocar Cristo ao canto, ainda que importante, Ben-Hur permite que Heston seja carne e osso, que evolua pela humanidade.

Para piorar, El Cid impregna-se de uma história de amor mofada, na qual os amantes apenas expressam paralisia, gestos calculados, frases pesadas, olhares falsos. Como se fosse possível sustentar uma relação profunda sem que essas pessoas, pelo menos por tempo parco, sejam vistas como figuras possíveis de um meio íntimo e cotidiano.

Eis um dos pecados de certos filmes épicos: renuncia-se à normalidade até nos pequenos instantes, que, por extensão da megalomania de seus criadores, não são assim tão pequenos. As frases da senhora Sophia Loren, única a ocupar o coração de Cid, são cheias de ensinamentos ou de uma vingança que a mesma, sabe-se cedo, não sustentará.

O problema é que El Cid matou seu pai, guerreiro do reino cristão da Espanha da época. O protagonista ousa, no início, dar liberdade a alguns islâmicos detidos após um combate. El Cid entende que a grandeza do líder está em dar a vida, não a morte, o que logo contribui à sua posição divina. A ação a favor dos islâmicos torná-lo-á, aos olhos de outros, possível traidor, antes de vencer uma batalha e provar seu valor.

Ainda no início, ao encontrar uma igreja destruída, o herói ajuda o padre a carregar a cruz. Do Ben-Hur que seguia Cristo, rumo ao calvário, Heston apresenta-se agora como o próprio homem a salvar o objeto, o qual, vale dizer, nunca seria consumido pelo fogo.

Salta à frente – igualmente atrapalha – a estética da conservação, esfera do impalpável, sem que algo ou alguém possa esfarelar, apodrecer, sem que se encare o finito – o que faz pensar de novo no cadáver posto sobre o cavalo, mito embalsamado, boneco que deverá, em imagem que percorre a batalha final, viver aos olhos do povo.

Nem a masmorra retira a beleza de Loren, levada ao local, a certa altura, pelo rei mimado a quem El Cid jurou servir. A religiosidade do herói cega-o, ou apenas o torna capaz de ignorar qualquer coisa para servir quem julga maior que a coroa: Deus. À clara vilania do novo rei, o cavaleiro impõe a Bíblia, o juramento à mesma, para que o líder prove honestidade.

Há algo podre nesse reino. Aos mais fracos, a começar pelo novo dono da coroa, nem o Divino freará o desejo de poder, a mentira, forma de governar típica dos homens. Ao rei mentiroso, capaz de tudo pelo trono, a Bíblia causa medo. Os homens seguem como sempre foram. Para eles – ou contra eles – existe o herói acima de qualquer suspeita.

(Idem, Anthony Mann, 1961)

Nota: ★★☆☆☆

Veja também:
Ben-Hur, de William Wyler

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