Antes do homem com “ossos de vidro” de Corpo Fechado, M. Night Shyamalan havia criado o fantasma que não reconhece a própria morte em O Sexto Sentido; depois, daria vida à moça cega que, em A Vila, converte-se justamente na guia possível ao seu povo, preso aos próprios medos, encurralado pelos monstros da floresta.
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Os improváveis, aparentemente fracos, tomam espaço. Quebráveis, mortos ou cegos, ainda são capazes de mudar tudo. Em Vidro, terceira parte de uma trilogia composta também por Corpo Fechado e Fragmentado, Elijah Price (Samuel L. Jackson) retorna à sua posição natural: finge estar apagado e, na reta final, toma as rédeas da história.
Price acredita em um mundo de super-heróis e vilões. Nascido frágil, a quem os movimentos bruscos da infância dão alguns ossos quebrados, as histórias dos fortes, nas revistas em quadrinhos, seriam a ele o refúgio natural. O fantástico como motor à esperança e, para Shyamalan, como prova de que nada é por acaso, vale acreditar.
Então apagado, Price precisa encaixar as peças, provar as teorias nas quais, a vida toda, acreditou. À sombra da mãe protetora, recluso por natureza, não poderia se libertar para ser o herói; excluído, desde sempre o menino impedido de brincar, desenvolve o que alguns vilões tem como trunfo: a capacidade de tramar catástrofes.
Em Corpo Fechado, ele sai atrás de seu oposto, o inquebrável. Price quer provar a existência de seres com superpoderes, pessoas dotadas de força sobre-humana, gente como David Dunn (Bruce Willis), único sobrevivente de um acidente de trem, do qual saiu sem escoriações. Ao outro, é seu equivalente às avessas, candidato a herói.
Com Fragmentado vem o passo seguinte de Shyamalan: um sequestrador (James McAvoy) de múltiplas personalidades está prestes a dar vida a mais uma, a mais perigosa, a Besta. Em um mundo de super-heróis, o vilão seguinte – incontrolável, animalesco – será produto não de um homem, mas de um ser com muitas máscaras e nenhuma, que com alguma dificuldade deixa ver quem é, que troca de trejeitos, tom de voz e expressões em questão de minutos.
Alguém com múltiplas personalidades é alguém que nega a retidão, por isso complexo a um mundo bipolar. O cineasta nega também esse aspecto e, em golpe nada menos que genial, oferece, em Vidro, cada uma das peças – o herói, o vilão calculista, o homem de máscaras – como complementos a uma tese, não como opostos feitos ao duelo.
E ela é a seguinte: para dentro do filme, seres extraordinários existem e, em um hospital psiquiátrico, são calados por outras forças que se revelam ao fim; para fora do filme, a imaginação é necessária contra um mundo cético, no qual tudo pode ser explicável em bases científicas, no qual homens que se intitulam super-heróis ou supervilões habitam hospícios.
Entra em cena, por isso, a personagem de Sarah Paulson, a psiquiatra Ellie Staple, polida e séria o suficiente para se fazer acreditar. Com esses homens enjaulados, a ignorar o que antes fizeram de extraordinário, ela tenta convencê-los – também o público – de que suas crenças são frutos da vida à qual foram moldados, dos dramas do passado.
A ideia presente em Corpo Fechado está de volta: muito do universo ao redor reproduz as histórias em quadrinhos e, em certo sentido, é moldado pelo olhar da criança. O homem que crê nesses seres seria então o homem infantilizado, consumidor dessas histórias, que cria seus deuses para reparar seus problemas e praticar justiça.
Não por acaso, Vidro retorna ao trauma de infância de Dunn, relacionado à água; ao drama de infância de Price, que teve alguns ossos quebrados enquanto brincava em um parque de diversões; aos conflitos de um certo Kevin Wendell Crumb, rapaz que perdeu o pai quando ainda era criança, deixado aos cuidados de uma mãe cruel.
Em comum, eles têm seus motivos para viver neste mundo de super-heróis, como nas histórias dos gibis. Para dentro do filme, os seres fantásticos existem. Seus inimigos são os adultos, que constroem prédios altos e lutam para calá-los.
(Glass, M. Night Shyamalan, 2019)
Nota: ★★★☆☆
Veja também:
Corpo Fechado, de M. Night Shyamalan