Orson Welles: (…) em O Processo há longas sequências com luz refletida. Toda primeira cena, no quarto, foi iluminada com arcos voltaicos enormes do lado de fora, a luz batia nos painéis brancos e voltava. Quase todo o filme foi feito com luz refletida. Hoje em dia virou moda, principalmente para fotografia em cores. É a única coisa que o pessoal bom faz. Fotógrafo moderno não usa mais luz direta.
Peter Bogdanovich: Quando foi que você rodou a cena em que a mulher arrasta o baú? A luz é extraordinária.
Orson Welles: Final do dia. No instante em que os postes da rua acenderam fizemos uma tomada, e a pobre Suzanne Flon teve que carregar o baú por oito quarteirões.
Peter Bogdanovich: E não significa nada em termos de símbolos.
Orson Welles: Não. Exceto o que está imediatamente aparente. Não quero ser muito enigmático, mas eis aí.
Peter Bogdanovich: Você disse que não gosta de simbolismo…
Orson Welles: Odeio.
Peter Bogdanovich: Mas senti que O Processo…
Orson Welles: É o tipo de assunto que talvez o faça sentir-se na obrigação de procurar símbolos. Tem cheiro e tem cara daquela espécie de mundo de sonhos centro-europeu que se imagina estar repleto deles.
Peter Bogdanovich: O sonho ideal do caçador de símbolos – é um dos motivos de eu não gostar muito do filme, acho.
Orson Welles: Você pode construir seus próprios símbolos, se quiser. Oportunidades não faltam. Mas não há um único símbolo nele.
Peter Bogdanovich: Bom, existe algum motivo para que as crianças persigam Perkins depois que ele sai do ateliê do pintor?
Orson Welles: A única resposta para isso é aquela velha piada ídiche: o pobre cavalheiro judeu está nas últimas, na pensão de uma senhora irlandesa. O homem não tem escapatória. A dona da pensão chama um padre. Ele chega, tira as coisas todas da maleta e começa: “Acredita no Pai, no Filho e no Espírito Santo?” Vira-se o sujeito e diz: “Eu aqui morrendo e ele vem com adivinhação”.
Peter Bogdanovich: Falando nisso, como é que fez aquela sequência – K correndo pelo corredor de tabuinhas?
Orson Welles: Mandei construir uma espécie de galinheiro bem comprido, de tabuinhas, num espaço aberto, e iluminei com arcos voltaicos, à noite; a câmera estava numa cadeira de rodas e nós a puxamos de ré, porque não havia um dolly que coubesse ali. Chamei um corredor iugoslavo para puxar a cadeira de rodas. Essa foi uma das únicas coisas que sobraram de meus desenhos originais. Isso e o cubículo do pintor com a escada, por onde as meninas trepam para perseguí-lo, foram as duas únicas coisas que sobraram. Nós construímos aquela estrutura enorme.
Peter Bogdanovich: Nessa cena, a impressão que dá é que aquelas crianças que aparecem para atormentá-lo são símbolo de alguma coisa.
Orson Welles: Por quê?
Peter Bogdanovich: Bom, então para que servem?
Orson Welles: Para que serve um sonho?
Peter Bogdanovich: Então é isso que o filme todo é…
Orson Welles: Sim, um sonho – um pesadelo – inspirado por Kafka. É surrealista, se preferir. Mas os bons surrealistas não são simbolistas.
O trecho destacado está no livro de entrevistas Este é Orson Welles (Editora Globo; pgs 340-342). Acima, Orson Welles; abaixo, Welles com o ator Anthony Perkins nos bastidores de O Processo, lançado em 1962.
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