O invasor mostra tranquilidade. Aos poucos, está no centro da família. Incômodo, fala sobre morte como algo natural. Enfurece o público ao dar certezas sobre o que vem pela frente, contra os adultos que mostram alguma surpresa. Tem uma aura ao mesmo tempo angelical, ao mesmo tempo demoníaca. Como alguém de outro mundo.
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Suas certezas colidem com as dúvidas dessa mesma família em O Sacrifício do Cervo Sagrado: com as do médico, o pai que fala pouco, o cardiologista; com as da mãe loura de cabelos cacheados, que mais tarde resolve investigar a relação do marido com o menino que aparece; com as dos filhos, que perdem os movimentos das pernas.
O recém-chegado chama-se Martin (Barry Keoghan). É o que há de mais misterioso e forte no filme de Yorgos Lanthimos. Está nos lugares inesperados, parece sincero demais, aos poucos começa a incomodar. Logo o público descobre uma ligação entre ele e o cardiologista, Steven (Colin Farrell), envolvendo a morte do pai do garoto.
Palavras soam estranhas, automáticas, na boca dessas personagens: comportam-se não raro como seres sem vida. O universo de Lanthimos é feito de estranheza, de seres aparentemente ingênuos tragados a situações obscuras, violência, espaços fechados – como se pode conferir em seus filmes anteriores, a começar pelo denso Dente Canino.
Pois em O Sacrifício ele retorna à família e sua possível desintegração. É Martin quem traz as más notícias, ou a capacidade de levar àquele círculo aparentemente perfeito uma maldição: segundo ele, o pai terá de matar um dos membros da própria família para que o restante sobreviva. O contrário pode representar o fim de todos.
Os humanos e adultos, de problemas e pecados revelados, tentam resistir. A saída, chegam a aventar, seria matar o garoto. Por outro lado, não é simples como parece: o anjo do mal feito à aparência pura traz apenas uma solução, na possível contato entre real e religioso, palpável e inexplicável, no terreno da intromissão.
É sobre isso que Lanthimos debruça-se, com roteiro coescrito por Efthymis Filippou: a invasão que explode na tela logo na primeira imagem, quando se vê um coração batendo durante a cirurgia. A vida pulsa, automática, sem que se veja o humano, seu portador. O guardião dos sentimentos, que tanto os representa, em estado bruto.
A obra prefere os órgãos, a pele, o desejo carnal, os caminhos que indicam a civilização apodrecida sob o manto da bela família em sua grande casa, reino de espaços brancos e limpos, cômodos espaçosos. A câmera, mais de uma vez, coloca-se à determinada altura em que vigia ou registra, sem se intrometer por completo.
O pai perde a cabeça quando os filhos não conseguem mais andar, quando a medicina não tem respostas – nem cura – àquela suposta maldição. A mãe, interpretada por Nicole Kidman, tenta descobrir mais sobre os erros do marido, sobre o novo e estranho garoto que se infiltra em sua casa. Como antes, enxerga apenas o indecifrável, restando pouco mais que dor, que relações carnais, ainda que não se duvide de seu amor pelos filhos.
(The Killing of a Sacred Deer, Yorgos Lanthimos, 2017)
Nota: ★★★☆☆
Veja também:
O Lagosta, de Yorgos Lanthimos