Os dois tempos levam a diferentes histórias de amor, a caminhos opostos: no passado, o romance não se consome sem os problemas sociais, as marcas de classe; no presente, o casal de atores mostra aparente leveza, facilidade, depois passa à dificuldade de separação.
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Os atores do segundo caso interpretam as personagens do primeiro, no melodrama de época desenhado sem exageros, A Mulher do Tenente Francês. Esses atores aos poucos vão ganhando espaço, ajudam a explicar a conexão entre o casal supostamente fictício daquela história de época. O filme de Karel Reisz é sobre uma obra dentro de outra.
Mesmo sabendo disso, desde o início o espectador deixa-se levar mais pelas dores da ficção, menos pelo drama da suposta realidade. No fundo, Sarah e Anna, bem como Charles e Mike, começam a se confundir. Apesar do filme escancarado, ao qual servem a claquete da abertura e o grito de “ação”, é pela história de amor da atualidade que se compreende a história passada: seus atores lançam-se ao amor verdadeiro.
Nesse jogo de espelhos, Sarah pode amar Mike, Charles pode amar Anna. Não estranha que ele, o ator, grite pela personagem ao fim, pela mulher que vai embora, pela Sarah que nunca poderá ter para sempre – diferente do homem que viveu, que termina na companhia da amada, no barco, após três anos de sofrimento, à sua procura.
Pode parecer repetitivo, clichê, mas a ficção resolve os problemas insolúveis à realidade. O jogo de espelhos por isso mesmo é cruel: da leveza do mundo real, no qual os amantes traem seus companheiros enquanto filmam juntos, não se sai com soluções fáceis. Eles não estão dispostos a apelar às quebras, ao risco de perder a família e a vida que construíram fora dos sets de filmagem, dos trabalhos temporários.
No presente, apesar do amor, a relação é uma aventura passageira; no passado (ou na ficção), o amor propõe o rompimento, a possibilidade de se deixar tudo para trás – um casamento rentável porém arranjado, uma identidade, um título.
A história da “mulher do tenente francês” é curiosa. Sarah (Meryl Streep) parece pequena, frágil, e pouco a pouco se revela grande: ela é considerada prostituta pelos moradores de uma pequena cidade à beira-mar, fêmea fácil que circula por bosques pecaminosos na falta dos becos londrinos, alguém que teria se entregado aos braços do tal tenente francês.
Seguida por Charles (Jeremy Irons), paleontólogo que trabalha na região, prometido a outra dama de família abastada, Sarah começa a se revelar. Para o darwinista, nada mais forte, à época, que a mulher que nega os papéis convencionais: essa “mulher do tenente francês” – militar que talvez não exista – não quer ser esposa nem prostituta.
Ela teria criado a fama de pecadora ao redor de si mesma. Repousa sob sua face frágil a escolha que a faz crer estar sobre todos, que a fortalece, naturalmente incompreendida. Um amigo de Charles, médico da região, chama o caso de melancolia, diz que a mulher pode manipular o paleontólogo que, àquela altura, está apaixonado.
De fato, Sarah desafia convenções, regras, sem que precise gritar. Encontra, ao fim, sua própria fuga: renuncia ao amor esperado para ser a mulher inesperada, a artista emancipada ainda na era vitoriana. A Charles cabe a destruição, ou quase; à procura da amada, desestabiliza, vê-se face a face com prostitutas carregadas de maquiagem, todas devidamente entregues; a ele, coitado, só restam os mesmos locais.
Sarah, na pequena cidade em que boa parte do filme é ambientada, prefere o molhe que ajuda a compreendê-la: estrutura forte, inderrubável, porém repleta de curvas, torta, em direção ao oceano, ao infinito. Nos dois tempos, o longa é dela, ainda que o ponto de vista seja o dele. Nos dois casos, ela, misteriosa, oscila entre fragilidade e força.
Outra questão interessante é perceber o quanto a segunda história, a dos atores, não apequena a primeira – a partir do roteiro de Harold Pinter, do livro de John Fowles. Não se trata de revelar os bastidores do cinema. Nesse belo filme de Reisz, uma camada alimenta-se da outra o tempo todo, imbricam-se a ponto de se confundirem no grito desesperado de Mike à “mulher do tenente francês”.
(The French Lieutenant’s Woman, Karel Reisz, 1981)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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