Os cortes estabelecem uma continuidade visual descarada. Chega a parecer bobo, uma brincadeira, uma provocação em Nocturno 29, obra de Pere Portabella feita para não fazer sentido. Isso, claro, quando se pensa no oposto: a narrativa convencional, sua construção de personagens e os obstáculos e conflitos por um universo determinado.
Nesses moldes, no que parece um contraexemplo, Portabella oferece uma janela para se compreender o cinema e suas possibilidades: interessa mais o fluxo que surge da junção de imagens, ou do deslocamento das personagens pelo quadro, menos uma história a agarrar, que empurre o espectador à transparência. É, em certo sentido, surrealista.
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Na continuidade descarada, promovida pela montagem, a chaminé de uma fábrica dá vida ao charuto de um homem qualquer, a campainha transforma-se em mamilo, a máquina leva à roda do veículo, cromada, pela rua. Somam-se uma mise-en-scène cuidadosa, a fotografia granulada, as faces verdadeiras. O resultado faz saltar algo novo, ousado, de regras próprias.
Difícil, quando se fala em surrealismo, não pensar nas experiências iniciais de Buñuel com Salvador Dalí, o fluxo à contramão do sentido. Mas Portabella espreita o fio da história, deixa possibilidades, ligações. Suas transições de um quadro para outro são mais leves que as de Buñuel, convite a um sonho prazeroso, do qual não se escapa com facilidade.
O cineasta espanhol flerta com o primitivismo latino-americano da época, a fúria do cinema novo, e chega a flutuar, não raro, como um Fellini, em sonhos e desespero, voltas pelo terror, senhores indolores, mulheres misteriosas. Portabella filma o movimento, a continuidade, indiferente ao sentido que se espera de personagens e situações.
No início, a película queima após o encontro de um casal em local isolado. O filme é revelado, sua fragilidade aparece. O espectador está no cinema. O calor consome a película, aniquila-a. O homem, o primeiro a surgir em cena, vem do fundo, da paisagem, e caminha à frente. O plano-sequência é extraordinário, dá uma ideia do que se reserva.
Há em cena a mulher misteriosa (Lucia Bosé) que sai de uma grande casa, que vê um homem urinar em seu muro, que trata a pele com cremes, que toca a máquina para fazê-la funcionar – como se todo o filme esperasse por esse toque. E há também o homem que se embrenha entre contadores frenéticos, que usa peruca para invadir um cofre.
Desconhecido para muitos, Portabella merece menção. Em Revolução do Cinema Novo, é citado uma única vez por Glauber Rocha, que vivia em profunda conexão com cineastas europeus no fim dos anos 60 e começo dos 70 – nomes como Bertolucci e Jancsó. Para Glauber, Portabella é, à época, “o mais importante cineasta independente da Espanha”. Em conversa com o brasileiro, o espanhol disse que fazia filmes com pouco dinheiro e sonhava com o momento em que todos poderiam fazer o mesmo com facilidade, com pequenas máquinas portáteis, filmes magnéticos, cassete.
Em 1971, Portabella fez Cuadecuc, vampir, a partir dos bastidores e do “furto” de outro filme, o Conde Drácula de Jesús Franco. Entre imagens de encenações e descontração do elenco – que inclui Christopher Lee, Klaus Kinski e Herbert Lom – nasce um filme experimental calcado na ausência de diálogos, na captação direta do horror, no misto constante entre realidade e ficção. Outra forma de revelar o dispositivo, talvez mais eficaz que a película em chamas: ponto em que vida e filme são uma só coisa.
A economia é visível em obras experimentais como Nocturno 29 e Cuadecuc, vampir. Nelas, não há nada para compreender, tampouco para não compreender. Necessário se deixar levar pela experiência, sem surpresas e esconderijos: a colagem de movimentos, a pulsação de um cinema que não esconde sua natureza, seus cortes e truques.
(Idem, Pere Portabella, 1968)
Nota: ★★★★☆
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