A ousadia dos mais jovens confunde-se com paixão e confronta os adultos. Limitados a seus escritórios, em trabalhos diários e repetitivos, os mais velhos estão enraizados, não demonstram sentimentos. Vez ou outra, no Japão de Yasujiro Ozu, promovem pequenas fugas a rodas de saquê, momento para rir do passado, no qual vida parece mais fácil.
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Os adultos estão presos às tradições, não aceitam a afronta dos filhos que desejam casar por amor. Os mais jovens recusam o “bom partido”, o companheiro ou a companheira que não conhecem, com quem são obrigados a se unir por simples conveniência financeira. É desse meio – de suas particularidades – que fala Ozu em Flor do Equinócio, de 1958.
No círculo dos mais velhos, o pai é tomado pela sensação de que todos sabem de tudo e que ele nada sabe. Homem impotente, a quem só resta proibir, trancar a filha em casa, culpá-la por amar demais – justamente ele, cujo casamento foi fruto de uma ligação arranjada, agora resumido ao diálogo, à calmaria, com o homem e a mulher ajoelhados na sala.
Por sinal, Ozu não ultrapassa o limite dessa sala e dos corredores que a cercam; o quarto é o local íntimo, impensável, ao qual suas personagens, em outros filmes, correm para lamentar, sofrer, trancar-se, nunca para amar alguém ou dividir intimidades. Vive-se aqui em estado de petrificação, a prisão dos costumes, da felicidade que não vai além do sorriso.
Shin Saburi vive Wataru, o pai de família. Em O Sabor do Chá Verde Sobre o Arroz, de 1952, o ator já havia interpretado um homem que assiste ao impacto dos casamentos arranjados. Interpretava o marido que tinha de lidar com a mulher fria, indiferente, que não o escolheu como companheiro; em Flor do Equinócio, resta-lhe o papel do patriarca que tenta impedir a filha de se casar, com medo de que a mesma não encontre uma vida de conforto.
No caso das outras famílias, ou do discurso para os outros, o amor é sempre aceitável, nobre, belo. No caso de sua família, sempre vencem as tradições, as fórmulas para o bem-estar financeiro. “O mundo é cheio de inconsistências”, afirma ele, para explicar suas contradições. “E são todas estas inconsistências que fazem a vida.”
Não estaria falando, aqui, do cinema de Ozu? À medida que se vê preso às próprias ordens, às tradições que agarrou dos antepassados, Wataru não enxerga o movimento do universo ao seu redor, as peças que se entrelaçam e apontam – nada mais, nada menos – ao fluxo irrefreável de sua família e da sociedade. A filha casar-se-á, a mãe silenciosa sabe de tudo (mais do que ele), e a filha mais nova encara o óbvio com tranquilidade.
A aventura só é bela quando é dos outros, diz Ozu, ou quando é vista do lado de fora. Como quando é vista pela ótica do cinema. Mas Ozu oferece a dor interior, o homem vacilante, o cinema da vida real para se entender alguns movimentos difíceis, sofridos, demorados, como o do pai que precisa entregar sua menina ao homem que ela escolheu.
Ainda nos solidarizamos com o protagonista que, tudo indica, defende a causa errada: não é difícil entender as desconfianças e a proteção que o pai de família retém. A derrubada das tradições – como Ozu expõe em praticamente toda sua filmografia, em dramas e mesmo em comédias – salta aos olhos, ainda que lenta, em dolorida depuração.
A abertura de Flor do Equinócio é puro Ozu. Dois funcionários de uma estação de trem conversam sobre as noivas que passam pelo local. Eles não retornarão mais a essa história e, pelos comentários, indicam as tradições que resistem às máquinas e aos sinais do futuro. Somos levados da estação à sala de ornamentos de um velho Japão, ao casamento no qual nada está fora do lugar. A noiva está impecável, o noivo reveste-se de silêncio. No discurso, a beleza do amor; ao fundo, as incontornáveis tradições.
(Higanbana, Yasujiro Ozu, 1958)
Nota: ★★★★★
Veja também:
O’Haru: A Vida de uma Cortesã, de Kenji Mizoguchi