Por alguns momentos, Naomi Kawase persegue o movimento dos cozinheiros, suas mãos, seus gestos. A senhora revela paixão a cada investida, o rapaz faz daquilo apenas mais um dia de trabalho. A câmera aproxima-se desses corpos, dessas pessoas que trocam de lado, que remexem o feijão ao fogo e, logo cedo, preparam o doce para vender.
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A sensibilidade e o cuidado dão a ideia de que há mais que trabalho, mais que objetos e alimentos por ali. A senhora Tokue (Kirin Kiki) defende a conversa com o alimento, como se tivesse vida, ou como se sempre se estabelecesse uma relação de proximidade. É do diálogo, ou de sua falta, que fala Sabor da Vida. Em cena, gerações encontram-se.
A senhora em busca de emprego bate à porta. Surge à janela do rapaz, o cozinheiro Sentarô (Masatoshi Nagase). Apesar da necessidade de um ajudante, ele não acredita que ela – por causa da idade, da aparente fraqueza física – dê conta do trabalho. Para provar talento, a candidata deixa por ali um pote com sua pasta de feijão.
A surpresa é imediata quando Sentarô resolve prová-la. Ele próprio nunca comeu uma pasta tão boa. Resolve então contratar a mulher. E a senhora – de quem pouco se sabe – passa a surgir por ali, ainda antes do sol nascer, para “conversar” com os feijões que, como lembra, e como Kawase sustenta em imagens, possuem uma história.
No fundo, Sabor da Vida sustenta a conexão entre as pessoas e a natureza, o que já estava em outros filmes de Kawase. Pessoas que se perdem pela mata, pelo oceano, gente que se descobre nesse contato. E se a natureza soa falha em alguns momentos – os leprosos em cena, a começar por Tokue, apontam à questão -, a mesma senhora simpática – apesar de tudo – resolve driblar os obstáculos: é com o feijão que resolve dialogar.
Seres presos, também: o rapaz, que saiu da prisão e vive sozinho, em conflito com si próprio ao não conseguir dialogar, depois tomado por sentimentos; a menina, que foge de casa após a mãe não permitir que fique com seu pássaro de estimação; e, claro, a própria Tokue, isolada com outras pessoas que combatem ou combateram a hanseníase.
O pássaro preso é sua representação. E chega a ela, também não por acaso, a missão de libertá-lo enquanto se põe a falar as palavras finais, enquanto Kawase mira ao alto – às árvores, à lua, às cerejeiras, à natureza que pede para ser contemplada.
Quem conhece os filmes de Kawase pode estranhar o drama feito de lágrimas em Sabor da Vida. É verdade que a diretora chega perto do exagero, no seu limite, mas nunca o invade. A própria natureza desse drama ajuda a contar a história sem que se renda à apelação: é uma obra que clama pela necessidade de se ouvir a história dos outros, não pela necessidade de se falar ou gritar, de se deixar explodir para se valer de uma mensagem.
Contra essa opção por ouvir, a maioria prefere observar. Enxergam nas mãos de Tokue um problema, os sinais da lepra, ou do passado que talvez seja melhor ignorar: aquelas mãos aparentemente queimadas contam uma história de exclusão, de sofrimento, o que faz pensar nas guerras nas quais o Japão envolveu-se e nos problemas que isso trouxe ao seu povo.
Se há aqui um momento para falar mais alto, este é reservado ao plano final, feito em contra-plongée, com Sentarô em novo emprego, feliz, inspirado pela senhora que cruzou seu caminho. Grita para os outros no gesto mais forte. Ao que parece, fez as pazes com seu passado e drama. Ao fundo, cerejeiras em flor fazem-lhe companhia.
(An, Naomi Kawase, 2015)
Nota: ★★★☆☆
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